Os psicólogos portugueses podem, a partir desta terça-feira, inscrever-se na bolsa de profissionais que está a ser organizada para apoiar as vítimas de abusos sexuais de menores no contexto da Igreja Católica. A informação foi revelada em entrevista ao Observador pela psicóloga Rute Agulhas, coordenadora do Grupo VITA, a equipa independente constituída pela Conferência Episcopal Portuguesa para gerir o acompanhamento das vítimas depois da extinção da comissão independente liderada por Pedro Strecht, que investigou e quantificou o fenómeno dos abusos na Igreja num relatório conhecido em fevereiro deste ano.

Numa entrevista ao programa Sob Escuta, da Rádio Observador, Rute Agulhas falou sobre o trabalho do Grupo VITA, a equipa anunciada no final de abril pela Conferência Episcopal, e revelou que já estabeleceu contactos com a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Psicólogos, para que seja criada uma bolsa de profissionais vocacionados para o acompanhamento de vítimas de abusos sexuais de menores — profissionais esses para os quais serão reencaminhados os casos de vítimas de abusos que contactem a Igreja Católica, por via do Grupo VITA, e precisem de apoio em saúde mental.

Se, no caso dos médicos psiquiatras, os contactos ainda decorrem, no caso dos psicólogos os contactos com a Ordem já está feito e, a partir desta terça-feira, foi disponibilizado na Bolsa de Emprego da Ordem dos Psicólogos toda a informação para os profissionais que desejem integrar a bolsa.

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“Todos os psicólogos podem [aderir], mediante o cumprimento de determinados critérios. Definimos critérios obrigatórios e requisitos preferenciais, onde apresentamos o que vamos pedir a estes profissionais”, explicou Rute Agulhas ao Observador. “O Grupo VITA compromete-se a assegurar formação inicial nesta área da violência sexual, quer na área das vítimas quer na dos agressores, formação contínua e supervisão regular.”

Os profissionais que integrarem esta bolsa vão receber 40 euros por cada sessão — custos integralmente suportados pela Igreja Católica, por via das dioceses —, um valor em linha com os preços praticados no setor. Além disso, estes profissionais terão acesso gratuito a uma formação inicial e a formação contínua nas áreas associadas ao acompanhamento de vítimas de agressão sexual, bem como acesso gratuito a supervisão em psicologia, psiquiatria e direito, com profissionais mais experientes — um serviço que, habitualmente, tem de ser pago ou pelo próprio psicólogo (ou, se for o caso, pela clínica onde trabalha), e de que os psicólogos precisam de beneficiar durante um certo número de horas como condição de acesso a determinadas especialidades.

Para poderem integrar esta bolsa, além de serem membros da Ordem dos Psicólogos, os profissionais têm de ser detentores da especialidade em psicologia clínica e da saúde. Adicionalmente, será dada preferência a psicólogos com especialidade em psicoterapia ou em psicologia da justiça.

A criação de uma bolsa de psicólogos para acompanhar vítimas de abuso sexual de menores no contexto da Igreja Católica foi inicialmente avançada em fevereiro deste ano pelos responsáveis da equipa de coordenação nacional das comissões diocesanas de proteção de menores — grupo coordenado pelo antigo procurador-geral da República José Souto Moura. Inicialmente, a ideia foi apresentada como uma bolsa de psicólogos criada no contexto da Igreja, o que motivou várias críticas.

Um dos principais críticos foi o psiquiatra Daniel Sampaio, que pertenceu à comissão independente que investigou o fenómeno dos abusos ao longo do último ano. Em declarações à CNN Portugal, Daniel Sampaio disse que não era “uma boa solução” a criação de uma bolsa dentro da Igreja, porque “a história demonstra que quando os psicólogos e os psiquiatras pertencem às instituições, as pessoas têm muitas dificuldades em falar dos casos dessas instituições”.

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Em alternativa, Sampaio propôs que a Igreja criasse protocolos com o Serviço Nacional de Saúde para que as vítimas de abusos na Igreja tivessem uma espécie de via verde para acesso a consultas do âmbito da saúde mental — uma hipótese que Rute Agulhas rejeitou no final de abril, dizendo que “todas as pessoas têm direito a ajuda” e “não há vítimas só na Igreja”.

Depois das muitas críticas públicas, incluindo da parte do psicólogo Ricardo Barroso, que hoje também integra o Grupo VITA, a ideia foi alterada. Em abril, quando Rute Agulhas esteve em Fátima para apresentar o seu projeto aos bispos portugueses, já levava uma versão diferente: articular-se com as ordens profissionais dos psicólogos e dos médicos para que fossem essas instituições a criar bolsas a que a Igreja pudesse recorrer.

“A nossa ideia é criar uma bolsa em articulação com as ordens profissionais. Essa é uma bolsa externa, que vai ser recrutada, formada e supervisionada, a quem a Igreja vai pedir ajuda”, esclarece Rute Agulhas na entrevista ao Observador, reconhecendo que este modelo deverá funcionar como “facilitador da confiança” das vítimas na Igreja, que agora procura ajudá-las.

Os psicólogos interessados em integrar a bolsa devem inscrever-se na Bolsa de Emprego da Ordem dos Psicólogos até ao dia 25 de maio, preenchendo um questionário no qual deverão informar qual a experiência e formação que têm, se estão disponíveis para consultas presenciais, online, ou ambas, quais as línguas que falam, qual o número máximo de casos que estão disponíveis a acompanhar, qual a área geográfica que podem cobrir e se têm um gabinete onde realizar as consultas.

“A Ordem vai enviar-nos essa informação processada, com os respetivos currículos, e vamos perceber quem são estes colegas, em que região do país estão. Para nós é importante mapear todos os concelhos de Portugal”, explicou Rute Agulhas.

O Grupo VITA resulta de uma recomendação surgida no relatório final da comissão independente, que estimou a existência de 4.815 vítimas de abusos no contexto da Igreja Católica em Portugal entre 1950 e a atualidade, a partir de 512 testemunhos válidos recebidos durante o ano de 2022. Os membros da comissão recomendaram à Igreja que criasse uma nova equipa que pudesse dar continuidade ao trabalho de receção de denúncias, mas com um maior foco no acompanhamento das vítimas, em articulação com as estruturas da Igreja.

Os planos do Grupo VITA foram publicamente apresentados no final do mês de abril, numa conferência de imprensa em Lisboa, na qual Rute Agulhas anunciou a intenção de se articular com as ordens profissionais dos psicólogos e médicos para criar as bolsas que estarão agora à disposição da Igreja Católica.