A melhor coisa que João Almeida poderia ter após a histórica conquista do Monte Bondone era pensar que o pior e mais complicado já tinha passado. Não, não tinha. E a brilhante prestação no início da terceira semana que colocou o português no segundo lugar da geral a 18 segundos de Geraint Thomas e com 11 de vantagem em relação a Primoz Roglic estava agora dependente de três etapas que vão definir a história de uma Volta a Itália atípica por tudo o que aconteceu nas duas semanas iniciais mas que tem sido uma das mais duras dos últimos largos anos.

No sábado, o contrarrelógio a subir entre Tarvisio e Monte Lussari vai fazer as últimas diferenças. Na sexta-feira, a etapa com chegada a Tre Cime di Lavaredo assemelha-se mais a uma tirada típica de grande volta com duas passagens de primeira categoria antes da ascensão final. Esta quinta-feira, também a subir, o traçado até Zoldo Alto prometia espectáculo e era pródigo para tentativas de ataque.

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“Se sou candidato à vitória? Não sei, vamos ver em Roma. Sinto que este é um bom ano para mim. Sinto-me bem e quero aproveitar ao máximo. Ontem [Terça-feira] foi muito bom. Foi um dia muito longo e, no final, estou feliz pelos resultados e pelo esforço feito ao fim de seis horas de corrida rápida. Espero conseguir continuar assim e que tudo corra da forma mais tranquila possível. Classificação na geral e favoritos? Acho que o Roglic ainda é muito bom. No final de contas, são apenas 25 segundos, nada de especial. Espero tê-lo lá connosco na frente”, comentara o português após uma 17.ª etapa que foi quase um tratado de tréguas em relação a ataques, com a fuga a ser absorvida nos quilómetros finais e o pelotão a chegar em bloco, e até no tempo, com alguns chuviscos mas nada em comparação com o que já se viu. “Agora vamos ter a chegada no Val di Zoldo… Vai ser brutal, um desafio diria”, acrescentou ainda o corredor português.

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É certo que alguns corredores do top 10 do Giro colocavam João Almeida numa posição até de favorito, como Lennard Kämna da Bora, mas a demonstração de força do caldense e da própria UAE Team Emirates numa etapa quase perfeita a todos os níveis que só não correu a 100% porque Thomas conseguiu ainda agarrar a roda do português colocava também o chefe de fila da equipa do Médio Oriente com mais holofotes do que até aí, quase como um preço a pagar pelo sucesso.

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No entanto, era visível a confiança no corredor de 24 anos que em 2021 teve propostas de quase todo o pelotão internacional (algumas até mais vantajosas no plano financeiro) mas acabou por optar pelo conjunto de Tadej Pogacar tendo em vista a fase da carreira.

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“É fácil de dizê-lo agora mas acreditamos no João desde o começo. Talvez tenha sido importante ganhar uma etapa, para libertá-lo um pouco, mas o João é um rapaz calmo, que passa essa mesma calma aos colegas de equipa. Ainda está uma luta muito renhida entre o top 3, tudo pode mudar. Desistência de Pavel Sivakov? Sim, é um facto mas a Ineos e o Thomas continuam a contar com dois fortíssimos trepadores, o Arensman e o De Plus. No final, aquilo que conta nas subidas são as pernas”, explicara Fabio Baldato, diretor desportivo da UAE Team Emirates, resumindo também o “segredo” para o sucesso no Monte Bondone: “Se havia um sítio para fazer a diferença, era ali. O João mandava. Se se estivesse a sentir bem, atacaríamos; caso contrário, teríamos tratado de defendê-lo. Acima de tudo, foram as suas pernas e a sua cabeça quem decidiu atacar. É fácil fazer planos mas no final quem manda são os ciclistas”, acrescentou o italiano.

“Houve um pouco de chuva mas nada comparado com o que já tivemos. Tivemos boas condições no final. Foi um final em pelotão algo louco mas estamos felizes por ter salvo o dia. Sabíamos que as equipas dos sprinters iam impor o andamento, foi um bom ritmo. O objetivo era guardar o máximo de energia possível para as próximas três etapas. Vão ser muito difíceis e espero muitos ataques dos meus adversários. Vou lutar por manter esta camisola rosa”, salientara também Geraint Thomas, que cumpria esta quinta-feira 37 anos tendo como principais feitos no currículo a vitória no Tour de 2018, o segundo lugar no Tour de 2019 atrás de Egan Bernal e a terceira posição no Tour de 2022 superado por Jonas Vingegaard e Tadej Pogacar.

Como “prenda”, o britânico nascido em Cardiff tinha uma etapa muito “enganadora” que contava com duas contagens de primeira (com inclinação média de 7,1%) e quarta categoria antes de uma fase decisiva a menos de 40 quilómetros com nova contagem de primeira categoria (dez quilómetros a 7,8% médios) antes da entrada em Val de Zoldo, com uma segunda categoria mais curta mas a 9,7% antes de uma pequena descida e os três finais quilómetros a subir. Emoção não faltaria, tática das principais equipas muito menos.

“Acho que vamos ter uma perspetiva mais conservador, ver o que acontece porque amanhã será o dia D do Giro mas se tivermos alguma hipótese vamos tentar aproveitar. Vamos ver como corre a etapa, o que é capaz de fazer a fuga… Se calhar deixamos que os outros assumam a etapa… Estou numa posição muito boa, perto do Geraint [Thomas] e é o Primoz [Roglic] que precisa ganhar tempo. Se estou à espera que ele ataque? Não sei, talvez não porque pode guardar forças para amanhã mas também não ficaria surpreendido se o fizesse”, dizia João Almeida antes do arranque da etapa, voltando a fechar o jogo mas com preocupação acima do que era esperado com a tirada de sexta-feira onde a possibilidade de perder mais tempo era maior.

Ao contrário do que aconteceu nos últimos dias, a fuga demorou mais tempo a sair com os primeiros ataques a serem todos respondidos até à saída do grupo inicial de cinco corredores que contava com Jack Haig, Luis León Sánchez, Alexandre Delettre e Davide Gabburo a tentarem descolar de vez quando estava a ter início a passagem por Passo della Crosetta mas sem conseguirem nunca um grande destaque em relação ao pelotão que podia alongar mas continuava apostado em não permitir grandes mexidas nessa fase, sendo que só numa segunda fase conseguiram descolar num grupo onde estavam alguns dos principais candidatos à camisola da montanha como Thibaut Pinot, Derek Gee, Aurélien Paret-Peintre, Filippo Zana, Alessandro Tonelli, Marco Frigo e Jack Haig. Um pouco mais atrás, Almeida controlava Thomas com Roglic a começar a mexer.

A primeira “notícia” foi mesmo a forma como Ben Healy não aguentou o ritmo e acabou por descair não só do grupo mas também do pelotão, quase que a pagar a fatura pelos dias de fuga com uma vitória em etapa para a EF Education. Assim, Derek Gee, Thibaut Pinot, Marco Frigo, Filippo Zana e Aurélien Paret-Peintre conseguiram mesmo isolar-se na frente, sendo que Warren Barguil e Vadim Pronskiy andaram entre grupos até colar na frente para uma fuga que a 100 quilómetros do final tinha menos de dois minutos de vantagem. No entanto, era mais atrás que se centravam as atenções. Com a Jumbo a ter um ritmo forte que dizimou o pelotão a cerca de 30/40 elementos, com a Ineos a não gostar das movimentações de Jack Haig e a vir para a frente para controlar a corrida durante alguns momentos. Dúvida: como estaria Roglic? Daquilo que se via, ou o esloveno estava a fazer um grande bluff ou a maneira como andava mais para trás no grupo deixava antever dificuldades de um desgaste acumulado. Ineos e UAE Team Emirates teriam de ir a jogo para ver…

Thibaut Pinot conseguiu ser o primeiro na passagem pelo Passo della Crosetta, à frente de Marco Frigo e Aurélien Paret-Peintre, sendo que o corredor da Groupama espreitava também uma possível desorganização do pelotão para ir buscar uma vantagem de quatro/cinco minutos que lhe permitisse virtualmente entrar na luta pelo top 5 da geral (pelo menos). A etapa entrava numa fase de estabilização, com Pinot a ganhar de novo na passagem por Pieve d’Alpago e a Ineos a continuar na frente do grupo perseguidor que manteve a distância de dois minutos até ao desacelerar a 30/35 quilómetros da entrada na fase decisiva da etapa, altura em que a margem subiu para três e quatro minutos antes de novo forcing do pelotão para tentar baixar a diferença a 60 quilómetros sem sucesso, subindo para cinco minutos a 50 quilómetros da meta.

Pinot, de uma forma discreta mas muito ciente do que estava a fazer, ameaçava em termos virtuais a entrada no top 3, o que significava que poderia entrar na luta pela vitória na geral. Ou seja, o pelotão onde seguiam os líderes tinha os alarmes a soar mesmo sem grandes preocupações, também esperando para perceber se o francês estava a ter uma etapa pela vitória ou pela entrada no top 5. Os últimos 35 quilómetros da etapa iam chegar com o grupo fugitivo a mais de cinco minutos e meio do pelotão, com tudo a jogar-se nos dois grupos antes da última subida a sério do dia. E foi a Bora a começar a mexer-se, com Nico Denz a vir para a frente tendo em vista o top 5 de Lennard Kämna que estava a ficar em risco. A etapa tinha “começado”.

Thibaut Pinot trocou de bicicleta mas somou 40 pontos de nova passagem por contagem de montanha, num dia que pode ter sido muito importante ou decisivo para a camisola azul que deixou de ser de Ben Healy. Lá atrás, a Ineos, a UAE Team Emirates e a Jumbo seguiam com três/quatro corredores cada mas havia surpresas a aparecer perante o ritmo de Laurens de Plus, a começar com Hugh Carthy a ter dificuldade em manter-se agarrado ao grupo perseguidor tal como Bruno Armirail. A 20 quilómetros do final, a diferença para a fuga já tinha baixado para, sendo que Vadim Pronskiy tinha deixado os fugitivos reduzidos a seis.

A Eurosport analisava aquilo que se poderia esperar da chegada, com a colocação a ser um fator importante na subida mas também na pequena descida que se seguia. Em paralelo, e numa atualização de como andava Roglic, ficou essa nota de um outro companheiro de equipa ficar à espera do carro da equipa para agarrar numa garrafa de água e despejar no pescoço do esloveno perante o calor que se adensava (quem diria após tanta chuva…) com a subida sem uma brisa de vento. Pinot continuava na quarta posição no plano virtual mas o grupo começava a ceder perante o aumentar de dificuldades na subida dentro dos últimos quatro quilómetros. Ou seja, o francês ia sempre subir na classificação e até podia lutar pela vitória na etapa mas era no grupo dos líderes que se centravam atenções perante a possibilidade de ataques na parte final.

Pinot e Zana seguiam na frente mas os ataques começavam lá atrás e com João Almeida a sentir o ataque de Roglic, que agarrou na roda de Sepp Kuss para fulminar o grupo deixando o português em apuros durante alguns momentos. Estava confirmado que era apenas um bluff do esloveno, sendo que Geraint Thomas ia andando já sem companheiros com os dois elementos da Jumbo enquanto Jay Vine ajudava o português a reagir perante aquela típica “Almeidada” sem ir ao choque mas a manter o seu ritmo perante um companheiro de equipa australiano que foi determinante para “agarrar” o português dentro de uma diferença entre os dez e os 20 segundos. O pior estava para vir, quando Roglic se levantou e tentou ir pela rosa perante a resposta positiva de Thomas e uma distância maior para João Almeida, um pouco acima dos 20 segundos.

Kuss, que parecia ter feito a sua prova, voltou a vir para a frente guardar o seu escudeiro perante a resposta do líder da Ineos, sendo que houve uma vantagem para o português que teve a ver com a falta de ligação na frente, o que foi permitindo a João Almeida ver sempre os adversários diretos com tudo o que isso tem a nível de motivação e resistência mental para quem vai atrás, com mais um contratempo depois de uma saída de Jay Vine que ainda pareceu conseguir evitar a queda mas que atrasou de forma ligeira o português. Ainda assim, quando Thomas começou a jogar com Roglic, João Almeida já andava ali por perto com o apoio de muitos portugueses na estrada (hoje além da família tinha a Associação dos Lingrinhas nos últimos 1.500 metros). Zana conseguiu vencer Pinot, Barguil fechou as bonificações e Almeida perdeu 21 segundos.

Contas feitas, Filippo Zana ganhou com o tempo de 4.25.17, o mesmo de Thibaut Pinot que ganhou toda as passagens no alto menos a chegada. Seguiram-se Warren Barguil (50”), Derek Gee (1.03), Aurélien Paret-Peintre (1.24) e Marco Frigo (1.24) antes da chegada dos favoritos, com Primoz Roglic e Geraint Thomas a 1.56 e João Almeida a 2.17. Eddie Dunbar fechou o top 10 da etapa a 2.32. Na classificação geral, Thomas passou a ter 29 segundos de avanço sobre o segundo classificado que é agora Roglic, seguindo-se João Almeida a 39”. Dunbar subiu a quarto a 3.39, à frente de Damiano Caruso (3.51). Lennard Kämna (4.12), Thibaut Pinot (4.43), Andreas Leknessund (4.47), Thymen Arensman (4.53) e Laurens de Plus (5.52) completam o top 10 antes da decisiva etapa com três subidas acima dos 2.000 metros.