As feridas abertas em 27 de maio de 1977 em Angola continuam por fechar e os sobreviventes do massacre que enlutou o país nessa época exigem a formação de uma Comissão da Verdade, desde que não seja “de esquecimento”.
“Não se pode pedir a um filho de um desaparecido, que ainda hoje não sabe onde é que o seu pai morreu, para dar um abraço àquele que andou a matar os seus pais. Isto é de uma barbaridade terrível. Tem que haver aqui uma outra hipótese no âmbito de comissões de verdade a sério e não comissões de esquecimento e de abraços ou perdão”, defende José Fuso, da direção da Associação 27 de Maio.
Juntamente com outras organizações, a Associação 27 de Maio integra a Plataforma 27 de Maio, que pugna pela descoberta da verdade e para que Angola se reconcilie, 46 anos depois, consigo própria.
Em 27 de maio de 1977, uma alegada tentativa de golpe de Estado, numa operação que terá sido liderada por Nito Alves — então ex-ministro da Administração Interna desde a independência (11 de novembro de 1975) até outubro de 1976 —, foi violentamente reprimida pelo regime de Agostinho Neto, primeiro Presidente de Angola.
Seis dias antes, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MLPA, no poder) expulsara Nito Alves do partido, o que levou o antigo ministro e vários apoiantes a invadirem a prisão de Luanda para libertar outros simpatizantes, assumindo paralelamente o controlo da estação da rádio nacional, um movimento que ficou conhecido como “fracionismo”.
As tropas leais a Agostinho Neto, com apoio de militares cubanos, acabaram por estabelecer a ordem e prenderam os revoltosos, seguindo-se depois o que ficou conhecido como “purga”, com a eliminação das fações, tendo sido mortas cerca de 30 mil pessoas, na maior parte sem qualquer ligação a Nito Alves, tal como afirma a Amnistia Internacional em vários relatórios sobre o assunto.
Em abril de 2019, o Presidente angolano ordenou a criação de uma comissão (a CIVICOP), coordenada pelo ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queirós, para elaborar um plano geral de homenagem às vítimas dos conflitos políticos que ocorreram em Angola entre 11 de novembro de 1975 e 4 de abril de 2002 (fim da guerra civil).
Cerca de três anos depois, o Governo angolano promoveu as cerimónias fúnebres de Alves Bernardo Batista “Nito Alves”, Jacob Caetano João “Monstro Imortal”, Arsénio Lourenço Mesquita “Sihanouk” e Ilídio Ramalhete, vítimas do alegado golpe de Estado de 27 de maio de 1977.
Mas as feridas abertas no 27 de Maio continuam por fechar porque as análises de ADN aos restos mortais de vítimas do massacre entregues às famílias, incluindo os corpos de Sita Vales e José Van-Dunem, não correspondem às ossadas.
Ossadas de vítimas do 27 de maio entregues pelo Governo angolano não correspondem ao ADN
Michel Francisco, do grupo de sobreviventes do 27 de Maio diz à Lusa que já previa este desfecho.
A recusa das autoridades angolanas em permitir a participação de sobreviventes ou familiares das vítimas do massacre levou a que o grupo de sobreviventes “tivesse entendido logo que o que eles pretendiam era minimizar a questão, era desresponsabilizar as pessoas que estavam implicadas“, diz.
José Fuso tem a mesma opinião. “Estivemos de boa fé. Tivemos várias conversas com o ministro Queiroz. E a partir de um determinado momento, fomos pura e simplesmente ignorados, postos de lado. Não quiseram saber. Quer dizer, fingiram que nos ouviram, fingiram que iam dar voz aos familiares e às vítimas”, recorda, em declarações à agência Lusa.
Josefa Silva, de 56 anos, da Associação M27, que reúne órfãos, viu desaparecer vários membros da sua família, incluindo o pai, e alguns tios.
“O meu avô teve quatro filhos que morreram, mais dois que estiveram presos, genros e noras também, foi uma família muito afetada”, diz à Lusa.
Admite que quando soube da intenção de o governo angolano entregar as ossadas às famílias ficou “cética” quanto aos resultados, “tendo em conta como as coisas se passaram” e o facto de muitas das vítimas terem sido “amontoadas” em valas comuns e terem morrido em alturas diferentes.
Ainda assim resolveu ceder o seu material genético às autoridades angolanas, embora só o tenha feito quando chegou a Angola uma equipa de especialistas forenses portugueses, para “ter a certeza de que ia haver uma contra-análise isenta”.
“Era o nosso desejo, poder ter alguma coisa, fazer um enterro para fecharmos o ciclo. Estamos a viver um ciclo que nunca se fechou”, declarou, salientando: “Faz-me falta não ter o luto”.
Depois de se saber que os restos mortais entregues pelo governo angolano não correspondiam às vítimas do 27 de Maio, considera que as feridas voltaram a abrir-se.
“O processo fez reacender feridas que estavam a tentar ser saradas com o tempo. Voltou-se a abrir essa ferida, estamos na expetativa que daqui para a frente aconteçam coisas melhores e o processo seja mais bem enquadrado”, para que se caminhe para o esclarecimento do que aconteceu em 1977.
Josefa Silva diz que, do lado angolano ninguém mais a contactou, mas segundo a conclusão dos peritos independentes, o seu material genético não correspondia a nenhum dos restos mortais que foram entregues.
Michel Francisco aponta o dedo a João Lourenço.
“Quem sai mal na fotografia, isto tem que se dizer, é o senhor Presidente da República. Porque sabíamos que aquilo havia de resultar em nada, porque a própria Comissão não integrou como devia ser as pessoas indicadas para participarem no processo, os familiares das vítimas não participaram”, defende.
Michel Francisco salienta que a credibilidade da CIVICOP seria assegurada com a presença de representantes das Nações Unidas e da União Africana.
“Fizeram aquilo à revelia. Isso logo indiciava que algo de anormal se estava a passar. Ou seja, volto a repetir, no entendimento dos sobreviventes, esta Comissão foi criada apenas para desresponsabilizar as pessoas que estiveram envolvidas” na repressão.
“O sensato seria a criação de uma Comissão da Verdade, onde todos os responsáveis implicados na repressão sangrenta, nesta barbárie, teriam de confessar ou não os seus crimes e ajudar a indicar onde estivesse, onde colocaram os corpos das pessoas que assassinaram e depois daí partir-se para um processo, então, de certificação, com uma comissão especializada liderada pelas Nações Unidas ou com uma outra entidade qualquer indicada para se poder ter assim a verdadeira identidade das vítimas”, adianta.
Agora, com o problema de falta de correspondência das ossadas entregues às famílias com as análises de ADN, as suspeitas confirmam-se.
Michel Francisco conclui que o objetivo foi “esconder e ilibar o MPLA pelos crimes que cometeu contra milhares de pessoas” e diz que João Lourenço só tem uma saída: “Se ele quiser sair bem e terminar bem o seu mandato, ainda vai a tempo de refazer que é o que temos estado a sugerir e que é a criação de uma Comissão da Verdade para se descobrir, esclarecer os contornos que estiveram na base daquela tragédia que vitimou milhares de jovens, na sua maioria inocentes, que hoje podiam estar a dar o seu maior contributo para este país”.
José Fuso classifica a identificação das valas comuns, os funerais e a entrega das ossadas como um “espetáculo televisivo”.
“Criaram ali todo uma situação à volta de um espetáculo televisivo para dizer que estavam a fazer sem terem feito rigorosamente nada”, vinca, e acrescenta: “Como é que num processo destes de tanta dor de famílias, de tanta tragédia, se anunciam nomes de pessoas. A conclusão que eu posso tirar é de uma grande tristeza da parte das famílias. Uma deceção enorme das pessoas que acreditavam que havia finalmente uma vontade política de efetivamente resolver este caso”.
Michel Francisco reforça e considera que “perdoar sim, mas perdoar não significa impunidade”.
“Acredito que vamos ter justiça e vamos lutar por ela até morrer. A gente vai lutar até à morte para que a justiça seja feita, porque o que se passou, é inadmissível. Os crimes cometidos no nazismo até hoje estão a ser julgados, estão a ser encontradas pessoas, porque é que Angola vai ser diferente, não pode ser diferente”, conclui.