A autorização dada pelo Governo do PSD/CDS para a Parpública assumir junto dos bancos credores da TAP a dívida em caso de incumprimento foi uma decisão “muito grave” e “muito séria”, reafirmou Pedro Marques. O ex-ministro das Infraestruturas do PS, que voltou a ser ouvido esta quinta-feira no Parlamento sobre o seu papel no acordo que permitiu ao Estado retomar 50% do capital da TAP em 2016/2017, repetiu a intervenção feita um dia antes na comissão de economia e obras públicas, mas teve de enfrentar perguntas mais desconfortáveis sobre as consequências da carta de conforto na comissão parlamentar de inquérito à TAP.

Na primeira prestação, Pedro Marques defendeu que esta carta conforto aos bancos, que terá sido pedida e assinada num intervalo de dois dias durante o brevíssimo segundo Governo liderado por Pedro Passos Coelho, transformou aquilo que era um direito numa obrigação, ou direito potestativo que desequilibrou “brutalmente” a operação. Passou a existir “um direito potestativo”.

Isto porque o Estado, via Parpública, poderia ser obrigada a assumir toda a dívida histórica, e também futura, garante Pedro Marques — uma interpretação que foi mais tarde contestada pelo deputado do PSD, Paulo Rios de Oliveira — em caso de incumprimento da TAP. E independentemente da situação económica e financeira em que a empresa estivesse — até podia estar “espatifada”, realçou o ex-ministro socialista na audição da terça-feira. Além de poder constituir uma ajuda de Estado à TAP, ilegal porque não comunicada à Comissão Europeia (que Pedro Marques saiba).

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Para o ex-ministro, esta situação “poderia ter consequências desastrosas para o Estado”, e, por isso, o Governo do qual fez parte empenhou-se em alterar estas condições numa negociação com os privados.

Uma leitura que pode ser questionada pelas conclusões da auditoria do Tribunal de Contas, divulgada em 2018, e na qual se analisam as duas operações de privatização — a de 2015 e a de 2017. O relatório citado pelo deputado da Iniciativa Liberal, Bernardo Blanco, conclui que a operação dos socialistas permitiu recuperar o controlo estratégico, mas representou uma perda de direitos económicos (em futura participação nos lucros) e o Estado teve também de assumir “maiores responsabilidades na capitalização e financiamento da empresa”.

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“Como explica este reforço das responsabilidades resultantes da cartas conforto, uma decisão que tanto criticou?”, pergunta Bernardo Blanco.

Pedro Marques assume a sua divergência face a estas conclusões. “O nosso entendimento é diverso”, responde, remetendo para o artigo 10 do acordo parassocial assinado com os privados da TAP na sequência do acordo de recompra que limita a responsabilidade do Estado na capitalização da empresa a 269 milhões de euros, o que corresponde à participação de 50% que passou a deter. Se os privados não conseguirem cumprir a sua parte de uma eventual capitalização — 240 milhões de euros —, poderiam apenas passar para o Estado a responsabilidade relativa à dívida histórica da TAP (num total de cerca de 500 milhões de euros) e não relativa ao endividamento futuro contraído pela gestão privada. Pedro Marques refere ainda o desincentivo introduzido para os privados não atirarem para o Estado as responsabilidades de recapitalização — perderiam direitos económicos na TAP, que era um coisa que não queriam nesta fase.

Segundo a auditoria citada nesta audição, o Estado poderia ser obrigado a colocar mais dinheiro para capitalizar a TAP e em caso de “incumprimento insanável” dos acordos, ficaria obrigado a reembolsar o investidor privado dos créditos detidos sobre a empresa, onde estavam as famosas prestações acessórias subscritas por David Neeleman de 227 milhões de euros. Foi por causa desta cláusula, admitiu terça-feira na CPI, o ex-secretário de Estado, Miguel Cruz, que o Estado em 2020 decidiu que era preferível negociar um preço tirar o empresário americano da TAP, pagando 55 milhões de euros, porque a alternativa seria nacionalizar e isso daria direito a Neeleman a exigir as prestações que tinha colocado. Pedro Marques repete a justificação que deu horas antes de ser ouvido Miguel Cruz.

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O contrato com a Airbus estabelecia que qualquer dinheiro retirado da TAP pelo empresário americano antes de concluído o calendário de entrega dos aviões A 330 — 2025 — teria de ser entregue à Airbus que afinal tinha fornecido estes fundos a Neeleman com a finalidade expressa de capitalizar a companhia que era sua cliente. A cláusula protegia o fornecedor aeronáutico do risco de Neeleman descapitalizar a TAP antes da empresa pagar a totalidade dos aviões e é referida no parecer da VdA tendo como base o framework agreement assinado entre o empresário americano e a Airbus.

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A auditoria do Tribunal de Contas é ainda omissa — ou seja, não aponta nada — sobre outras polémicas que têm dominado as duplas audições (na comissão parlamentar de Economia e na comissão parlamentar de inquérito). O uso dos fundos Airbus por David Neeleman para capitalizar a TAP e como esses fundos resultaram de uma renegociação do empresário com o fabricante europeu de uma encomenda de aviões feita pela empresa portuguesa que estava em incumprimento.

Tal como outros protagonistas da época, Pedro Marques nunca foi alertado para uma eventual irregularidade no uso destes fundos por David Neeleman. A legalidade desta operação, aceite pelo Governo do PSD/CDS quando aprovou a proposta da Atlantic Gateway para a privatização da TAP em 2015, foi posta em causa sete anos depois em outras auditorias pedidas pela administração da companhia aérea liderada por Christine Ourmières-Widener. Auditoria que foi entregue à Procuradoria-Geral da República por suscitar suspeitas de ilegalidade e de penalização da TAP.

Questionado sobre Bruno Dias do PCP sobre se não lhe suscitou estranheza as declarações feitas em janeiro de 2016 por David Neeleman à revista Visão, nas quais associa a troca de contratos para compra de aviões — 12 A 350 por 53 A330 NEO — ao dinheiro que meteu na empresa, Pedro Marques reafirma que à data não tinha razões para desconfiar da legalidade da transação.

Mas reconhece que à data não sabia, só ficou a saber agora no contexto destas audições, e cita várias vezes o ex-secretário de Estado, Sérgio Monteiro, que a dimensão da nova oferta daria direito a um rappel (um desconto comercial pela quantidade de aviões). E diz que não teve, à data em que era ministro, informação de que esse desconto (o efeito financeiro positivo) desse contrato tivesse sido entregue a David Neeleman, que negociou a nova encomenda, em vez da TAP que era a compradora. Um tema que será certamente central na audição desta quinta-feira com o antigo secretário de Estado do Governo PSD/CDS.

Na entrevista de 2016, David Neelman recusou revelar os valores da compra dos A330, “mas posso afirmar que comprámos estas aeronaves por um preço muito baixo. O primeiro 330-900 no mundo vem para a TAP. Fizemos o cálculo com a redução dos custos de operação e com a diferença do valor do mercado dos aviões que vamos trazer, podemos avaliar esta operação em 860 milhões de dólares”. E quando questionado sobre se teve um ganho com a revenda da posição da TAP no contrato dos A 350, o empresário americano respondeu:

“Eu não tirei nada da TAP. Estou a trazer este valor todo e não posso tirar um cêntimo enquanto a dívida bancária da TAP não estiver toda paga. Esse é o contrato que tenho de cumprir”.

Foi na sequência destas declarações que Pedro Marque foi olhar com mais atenção para os documentos da privatização da TAP entregues pela Parpública, tendo encontrado o parecer da VdA a sustentar a legalidade da operação de David Neeleman com os fundos Airbus.