A pergunta já foi feita muitas vezes nesta comissão de inquérito à gestão pública da TAP, mas até esta terça-feira tinha sempre sido destinada ao interlocutor errado, a avaliar pelas respostas ouvidas pelos deputados dos vários protagonistas já ouvidos.

Ninguém sabia explicar o valor de 55 milhões de euros que em 2020 em plena pandemia foi pago a David Neeleman para este sair da TAP e quando o empresário americano inviabilizou na gestão da TAP a ajuda de emergência que o Estado queria dar à empresa. E houve até quem, como Lacerda Machado (que era administrador da empresa à data) tenha levantado dúvidas sobre a necessidade de pagar esse preço.

Daí que a expetativa de receber finalmente respostas que rodeou a audição ao então secretário de Estado do Tesouro, como referiu o deputado Bernardo Blanco — o primeiro a fazer a pergunta. Mas foram precisas cerca de três horas de uma audição que durou mais de seis horas para Miguel Cruz desvendar os mistérios por trás do “número que caiu do céu”, na expressão de Pedro Filipe Soares do Bloco de Esquerda. E ainda ficaram a sobrar alguns.

1Como se chegou aos 55 milhões de euros. É um valor que corresponde ao pagamento de 22,5% de ações de Neeleman na TAP, via Atlantic Gateway, ao reequilíbrio dos direitos económicos correspondentes aos 72,5% para o Estado e 55 milhões de prestações acessórias, associadas a essa posição. Com este acordo, David Neeleman abdicou  da litigância associada ao facto de o Estado passar a ser maioritário na companhia, começou por explicar Miguel Cruz.

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Mas, perante a insistência sobre porque os 55 milhões de euros, o ex-secretário de Estado assumiu que foi o resultado de uma negociação (da qual não fez parte) que já tinha começado quando assumiu o cargo em julho de 2020.  Os 55 milhões de euros resultaram da indicação dada aos negociadores para que chegassem a acordo com o empresário americano pelo “valor mínimo” que permitisse ao Estado entrar (a mandar) na TAP e, do ponto de vista do Governo, salvar a empresa que o privado (Neeleman) não queria capitalizar, nem deixava ajudar (pelo Estado).

Ficaram menos claras as explicações sobre a relação entre os 55 milhões de euros e as prestações de capital que David Neeleman tinha posto na empresa. Miguel Cruz disse que não havia ligação direta, mas acabou por admitir que os 127 milhões de euros de prestações acessórias (que não podiam sair da empresa segundo o acordo parassocial com  Estado) acabaram por ser o valor de referência máximo que balizou a negociação. Isto porque se não houvesse acordo, a alternativa era nacionalizar a TAP e aí assim, sublinhou, David Neeleman teria direito a ir para tribunal exigir que lhe fosse devolvido todo o dinheiro colocado na TAP (227 milhões de dólares ou 224 milhões de euros), mais o preço pago pelas ações, acrescidos de 20%. No limite esse seria o limiar máximo.

Era o “referencial mais óbvio”, mas era um valor incerto porque a empresa não valia zero, mas era muito complicado avaliar a TAP naquela altura.

Sem resposta ficaram as perguntas sobre o racional económico e financeiro por trás deste número. Foram 55, mas poderiam ter sido 45 milhões ou 65 milhões?

2A pandemia livrava o Estado de pagar a Neeleman? Essa posição foi assumida por Lacerda Machado na sua audição quando invocou a circunstância excecional da pandemia como fator que libertaria o Estado de cumprir o acordo parassocial com os privados da TAP. Ao contrário de Lacerda Machado (que é advogado), Miguel Cruz não é jurista, mas discorda desta leitura.

“Não concordo com a tese de que o acordo parassocial não tinha valor jurídico”. E lembra que há vários exemplos de como durante a Covid as situações excecionais são sempre difíceis de enquadrar. Não se podem escolher as cláusulas que valem e as que não valem.

Para o deputado do Bloco, o Estado colocou-se “debaixo de um privado que estava disposto a destruir a empresa” e aceitou pagar 55 milhões, um valor que “parece que caiu do céu”. “Se fossemos para uma nacionalização, o Estado ficaria ligado ao acordo parassocial que obrigava a devolver a Neeleman as prestações acessórias (227 milhões de dólares ou 224 milhões de euros), o valor nominal das ações, acrescido de 20%”. E insiste. “Não havia tempo, nem condições para qualquer tipo de litigância”.

Daí que o negócio também tenha sido justificado com a condição aceite por Neeleman de abdicar de toda a litigância contra o Estado.

3Quem negociou o acordo de compra e o outsourcing a advogados. Foram os advogados das partes que negociaram acordo com Neeleman, apontou Miguel Cruz. No caso do Estado era a VdA — contratada pela Parpública e que já tinha emitido parecer a validar a entrada do empresário americano na TAP em 2015 — e no caso de David Neeleman foi Diogo Perestrelo da PLMJ. Os deputados insistiram em saber quem deu o aval político ao acordo. Miguel Cruz começou por invocar o decreto-lei que materializa a decisão e que é assinado pelos ministros das Finanças (João Leão), Infraestruturas (Pedro Nuno Santos) e o ministro adjunto e da Economia (Pedro Siza Vieira) em representação de António Costa. Confrontado com a estranheza face o protagonismo dos advogados nas decisões da TAP (até dentro do Governo) e com uma “governação em outsoursing” por Pedro Filipe Soares, Miguel Cruz garantiu que não houve um “exercício de desresponsabilização.”

Houve uma decisão política de negociar com Neeleman para comprar a participação no cumprimento de um objetivo estratégico para a empresa, argumentou. Foram dadas orientações aos advogados para negociar e os resultados foram validados pelo Governo. E por quem no Governo? Apesar de não ter a certeza, admite que terá sido um dos que deu o aval, tal como os ministros João Leão e Pedro Nuno Santos. A decisão foi aprovada em Conselho de Ministros. Miguel Cruz referiu ainda não ter acompanhado toda a negociação iniciada do lado das Finanças no tempo de Mário Centeno (que vai ser ouvido na próxima semana) e Álvaro Novo na secretaria de Estado.

4Era secretário de Estado do Tesouro à data da polémica indemnização de 500 mil euros que está na origem da comissão de inquérito. Mas Miguel Cruz soube do prémio pago a Alexandra Reis ao mesmo tempo que todo o país: pelo Correio da Manhã a 24 de dezembro de 2022. Já sobre a saída da gestora, soube quando foi comunicada à CMVM. E admite que não teve curiosidade em saber os motivos, porque estes estavam explícitos no comunicado: era uma renúncia de alguém que ia abraçar novos desafios profissionais (hoje sabemos que não foi assim). “Alexandra Reis renunciou, a resposta está dada. Se renunciou manifestou uma vontade, que era sair. Foi isso que foi comunicado ao mercado e aos acionistas, não há ações que os acionistas possam desenvolver”, vincou.

Nunca notou mal estar entre Alexandra Reis e Christine Oumières-Widener, apenas que eram ambas “muito opinativas”. Sobre a saída, Miguel Cruz admitiu ter pensado que aquela não era a melhor altura, porque João Weber Gameiro, administrador financeiro, tinha saído há pouco tempo. Quando Alexandra Reis enviou um email, no final de dezembro, a colocar o lugar à disposição, na sequência da saída do acionista privado que a escolheu, nem as Finanças nem as Infraestruturas tinham interesse na sua substituição.

5Miguel Cruz não soube da indemnização a Alexandra Reis apesar de ser secretário de Estado do Tesouro. Na semana passada, a então chefe de gabinete de Pedro Nuno Santos até disse que a relação de Miguel Cruz com Hugo Mendes, secretário de Estado das Infraestruturas, era próxima. Mas a verdade é que há um email de Hugo Mendes a indicar à CEO da TAP que as Infraestruturas eram a única porta de entrada no Governo. Miguel Cruz não reconhece tal distância. “O que posso dizer é que durante quase dois anos de relação, de junho 2020 a 31 dezembro 2021, tivemos, Finanças e Infraestruturas e, particularmente, eu e Hugo Mendes, uma relação muito intensa”. Diz que “não houve um único sinal que a TAP tinha um impedimento em contactar as Finanças” e que havia o cuidado nas Finanças de partilhar “imediatamente” toda a informação sobre a reestruturação, nomeadamente com Hugo Mendes.

Mas acabaria por admitir que “nunca disse que o Ministério das Finanças sabia tudo o que se passava na TAP”, até porque a TAP tem autonomia de gestão “e há matérias que eram acompanhadas pelas Infraestruturas”. Mas, concluiu, “acho que o Ministério das Finanças devia ter sabido [da indemnização], mas não foi informado”.

6O ex-secretário de Estado foi testemunha em primeira-mão das negociações do plano de reestruturação da TAP. E garante que Bruxelas nunca fez exigências sobre cortes. Mas que era preciso fazê-los, de uma forma ou de outra. Os despedimentos, por exemplo, não foram iniciativa de Bruxelas, porque “Bruxelas nunca faz exigências sobre despedimentos ou outras matérias”. Mas a necessidade estava subjacente. “Bruxelas tem dois objetivos: que a TAP atinja a sustentabilidade a médio longo prazo, comparando o seu desempenho com os pares da indústria. E a compatibilidade com as regras dos auxílios de Estado. Não impõe. Mas tem de haver redução dos custos. Havia necessidade de reduzir os custos, obviamente”, sublinhou Miguel Cruz. Esse corte teve de ser feito no pessoal. Na estrutura de custos da TAP, o leasing dos aviões, o fuel (que era 27% dos custos), os custos com pessoal (mais 27%), as taxas aeroportuárias e as slots representavam 70%.

Se é certo que os custos com fuel baixaram, porque os aviões estavam no chão, essa quebra foi conjuntural. Na frota, foi possível adiar datas de entrada ao serviço de aviões, “e aí houve impacto financeiro”. Mas era preciso fazer mais. Nomeadamente na massa salarial. Bruxelas não impunha se seria por despedimento ou redução de salário. E o objetivo foi minimizar os despedimentos. “Ninguém estava a fazer isto de ânimo leve ou tomou estas decisões com satisfação ou sem olhar para as medidas possíveis. A TAP estava parada com um consumo de tesouraria enorme sem perspetiva sobre quando voltaria a ter receitas, o que foi feito foi para a TAP sobreviver”, garante.

Na altura até chegaram a existir manifestações de interesse informais pela companhia, o Governo não quis avançar por essa via, porque um empréstimo privado com garantia do Estado teria mais riscos e sairia mais caro. E ainda havia o caso de várias companhias aéreas estarem a ser ajudadas e impedidas de comprar empresas concorrentes.

Mas uma coisa é certa: a venda da TAP “não fazia parte das condições estabelecidas no plano de reestruturação”. Apesar de sempre ter havido clareza de que a TAP teria “muita dificuldade” em operar no mercado sem um exercício de consolidação.

7 Nenhum dos administradores da TAP fez contrato de gestão. O conselho de administração também não apresentou proposta. “Até eu sair, cada membro do conselho de administração da TAP não apresentou nenhuma proposta de contrato de gestão, até março de 2022”, atirou Miguel Cruz, para dissociar o contrato de gestão de João Weber Gameiro com o tema do seguro. Sobre o seguro “directors and officers” “houve muitas conversas” e sobre o contrato de gestão não, garantiu o ex-secretário de Estado do Tesouro. O tema foi falado por Manuel Beja, revelou, a quem foi dito que era preciso apresentar o contrato e que as orientações eram as do plano de reestruturação. Manuel Beja envia, em setembro de 2021, uma carta “que não é uma proposta de contrato de gestão, era uma proposta que tinha uma pré-condição que era o tema dos seguros. Foi avaliado, dei resposta, ele insistiu no tema, foi buscar um parecer jurídico, houve mais insistências e chegamos a dezembro”. O mês em que é aprovado o plano de reestruturação “e passámos a ter métricas a aplicar aos contratos de gestão”.

Miguel Cruz assumiu que Weber Gameiro terá considerado que não tinha condições para “lidar com a pressão” de um cargo que, no seu entender, tinha risco elevado. Isto porque a cobertura do seguro, que segundo Miguel Cruz existia, não era suficiente. Hugo Carneiro, do PSD, quantificou em 2,5 milhões o seguro para todos os administradores, um valor que Miguel Cruz não conseguiu confirmar. O valor do seguro que foi uma das questões apontadas pelo próprio Weber Gameiro para a sua saída é um problema, reconhece Miguel Cruz, que o Estado não conseguiu resolver. É um problema de mercado, assumiu, que tinha também de ter o plano de reestruturação em andamento para tentar ser solucionado.

Ex-CFO da TAP renunciou por “não ter condições pessoais para aguentar a pressão”, diz ex-secretário de Estado

8Conflitos de interesses e portas giratórias? O tema foi levantado pelo deputado do Chega, Filipe Melo, a propósito da ida de Miguel Cruz da Parpública para o Governo com a pasta desta empresa e por ter levado para chefe de gabinete a administradora desta holding que depois foi parar à vice-presidência da Infraestruturas de Portugal, empresa atualmente presidida pelo gestor, que por sua vez, foi nomeado por Pedro Nuno Santos quando era ministro das Infraestruturas, já depois de ter saído do Executivo quando João Leão substituiu Mário Centeno.

Miguel Cruz afirmou não ter uma relação muito próxima com Pedro Nuno Santos, mas espera poder chamar-lhe amigo agora que já não está em funções. E sublinha que antes destes convites já era gestor de entidades públicas, com convites de mais do que um partido. “Não tenho filiação partidária, mas não acho que isso tenha importância.” Justifica que Maria Amália Almeida, que o tem acompanhado desde a Parpública tinha já uma carreira de gestora pública.

E ainda justificou a referência à “professora Clara Raposo” com quem Miguel Cruz é casado e que, realça, foi nomeada para a administração do Banco de Portugal devido à sua carreira académica distinta e pelo ministro das Finanças, Fernando Medina, já depois de Miguel Cruz ter saído do Ministério.

Bruxelas não deixou TAP assistir à negociação porque era parte interessada