Está “fora da vida política e da vida da TAP” há anos, mas tem memória, e muito para dizer, sobre os anos em que teve a tutela da companhia. António Pires de Lima, antigo ministro da Economia, esteve na comissão de inquérito à tutela política da gestão da TAP esta quarta-feira para contar a sua versão dos acontecimentos até 30 de outubro de 2015, data em que deixou o Governo. E não poupou críticas a quem lhe sucedeu.

Na sua intervenção inicial, Pires de Lima manifestou-se disponível para responder “às perguntas que entenderem fazer sobre os denominados ‘Fundos Airbus'”. E assim foi. Para o ex-ministro, a polémica operação, sob a qual recaem suspeitas, foi positiva para a TAP. E nada terá de ilegal.

Em 2015, lembra, a TAP acumulava meses de atraso no pagamento de combustíveis e dívidas aos fornecedores. “Estava em situação de falência desde 2008, após o negócio ruinoso no Brasil, com uma situação líquida negativa de 600 milhões de euros. “O Estado não podia socorrer a TAP. Era crítico encontrar uma saída que passava por privatizar”. A saída foi David Neeleman.

Pires de Lima diz que em 2020, “é que os lucros foram todos para Neeleman e custos ficaram para os portugueses”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A primeira proposta vinculativa da Atlantic Gateway (AG), de 15 de maio de 2015,  referia que a empresa tinha a intenção de cumprir com os montantes de capitalização propostos comprando, por 150 milhões de dólares, um contrato de 12 aviões A350 à TAP. “Esta intenção não permitiu que a proposta pudesse ser aceite”, disse Pires de Lima. A AG julgava que esse valor podia entrar como capitalização mas o Governo entendeu que não era aceitável. “O contrato transitava para eles, era a compra de um ativo da TAP”. Na proposta melhorada, apresentada em junho, a capitalização “era assumida em termos claros”, e os 150 milhões de dólares mais 167 milhões de euros que não estavam condicionados à compra daquele contrato. “Entendemos que a proposta, no que dizia respeito à capitalização, cumpria os requisitos necessários para ser aceite. Era mais forte que a do consórcio concorrente”.

Depois disso, explicou Pires de Lima, na segunda quinzena de setembro, o secretário de Estado Sérgio Monteiro informou que a AG manifestou a intenção de usar fundos da Airbus para proceder à quase totalidade das responsabilidades de capitalização inscritas no contrato. O Governo tentou “perceber” a operação, sabendo que os fundos “não podiam nunca” ser financiados pela TAP. “Não podiam significar um custo maior que os 53 aviões que a TAP ia comprar”. Se isso não fosse garantido, a operação não tinha condições de ser aprovada.

Mas quando proposta passou a formal, “trazia elementos que considerámos importantes”. Nomeadamente, uma carta da Airbus que dava nota que a “contribuição” que dava à empresa de Neeleman, a DGN, “acontecia pela confiança que tinha com o empresário há muitos anos e não punha em causa a entrega dos aviões à TAP” ao valor de mercado justo. “A TAP não seria prejudicada”, adiantou.

Além das cartas assinadas por Humberto Pedrosa e pela DGN sobre a bondade da operação, havia nove avaliações que apontavam para um valor de compra dos aviões pela TAP “até ligeiramente abaixo” do valor de mercado. “Não acredito que uma empresa com as responsabilidades da Airbus e que empresários como Neeleman e Pedrosa se estivessem a conluiar para enganar o Estado português”, sublinha.

Ao longo dos anos, reforçou Pires de Lima, a compra dos aviões e os seus valores “foi sendo confirmada pelas administrações da TAP, e nunca foi questionada pela estrutura interna da TAP”. “Continuo convencidíssimo que o negócio foi feito a preços de mercado. A TAP não foi prejudicada, foi capitalizada em 226 milhões de euros e com isso concretizou um projeto de crescimento que durou até 2019”. A TAP, crê, “não comprou os aviões mais caros”. O dinheiro “era da Airbus que acedeu ceder a Neeleman face à magnitude da compra. Beneficiou a Airbus, Neeleman e muito a TAP”.

A Airbus “beneficiou em faturação de forma significativa” com o negócio e por isso “não é muito surpreendente que Neeleman tenha procurado financiar-se num fornecedor muito beneficiado com a mudança do plano estratégico uma parte das obrigações de capitalização que tinha assumido”.

O tema ocupou grande parte da audição a Pires de Lima, o que levou o ex-ministro a reforçar várias vezes a sua tese. “Todos os juristas que tenho consultado sobre este tema garantem que a operação é legal se os aviões tiverem chegado” ao preço justo de mercado, reiterou. E citou três entidades que deram nota disso, que o preço estava dentro, até ligeiramente abaixo, do preço de mercado.

Capitalização com Fundos Airbus só seria ilegal se TAP pagasse mais pelos aviões do que o valor de mercado

A sociedade que advogados que assessorava a operação, a Vieira de Almeida, “entendeu que aquela forma de capitalização era legítima e não correspondia” a qualquer irregularidade. E sobre o parecer recente (pedido pela TAP) que apontará para ilegalidade de operação , da Corte Martins, o ex-ministro desvaloriza o seu significando, indicando que os dois pareceres têm a mesma conclusão. Ou seja, a capitalização seria ilegal se fosse feita com fundos que tivessem origem na própria TAP, o que só aconteceria se a transportadora estivesse a pagar a encomenda de aviões trazida por Neeleman da Airbus a um preço superior ao do mercado (fair value market). O que, segundo os pareceres de 2015, que não era o caso, mas que será contrariado por pareceres recentes pedidos pela própria TAP e entregues ao Governo em 2022. É com base nestes documentos, que não são do conhecimento público, que Pedro Nuno Santos comentou: “Se calhar fomos todos enganados. A TAP, o Governo do PSD/CDS e o país”.

“Não tínhamos razão objetiva para impedir que a privatização se concretizasse. Posso gostar mais ou menos da solução, mas não me pareceu estranho que Neeleman procurasse financiar uma parte da capitalização da empresa com dinheiro da Airbus”. Esse dinheiro eram “fundos próprios” e cumpriam com o compromisso firmado em junho, defende. “Era um negócio que só ele tinha permitido fazer”.

“Não me incomoda se a Airbus ganhou dinheiro, se foi um negócio bom para Neeleman. Com a criação de riqueza dos outros eu não durmo mal. O importante é que a TAP tivesse solução e deixasse de ser uma empresa em falência técnica”, realçou. O simples facto de o dinheiro vir da Airbus não significa nenhum crime, acrescentou.   Pires de Lima admite que se, porventura, “vier a comprovar-se que a TAP financiou a Airbus e que a Airbus financiou Neeleman e que os aviões foram comprados acima do preço, repito o que disse Pedro Nuno Santos. Se fomos todos enganados têm de se tirar consequências. Ainda bem que o Ministério Público está a fazer as suas averiguações”, concluiu.

Questionado pelo Chega sobre se foi contactado pelo Ministério Público no âmbito dessa investigação aos fundos Airbus, suscitada por uma auditoria feita à TAP, Pires de Lima afirmou que não e colocou a auditoria em causa. “Não conheço essa auditoria nem as conclusões, e não me parece que exista. Não é qualquer documento feito a pedido que se pode chamar auditoria”.

“Havia uma pasta de transição” e Fundos Airbus estavam lá

Pires de Lima contrariou ainda o que foi dito por Mário Centeno e Ricardo Mourinho Félix. O ex-ministro afirmou na CPI que não lhe foi transmitida qualquer informação sobre o dossier TAP na passagem de pasta entre Governos. Segundo Pires de Lima, que saiu do Governo a 30 de outubro mas cita informação que lhe foi dada, “havia uma pasta de transição na secretaria de Estado das Infraestruturas” e “da parte da Parpública houve o cuidado de marcar uma reunião com os responsáveis políticos e técnicos do novo governo socialista, no início de dezembro”.

E insistiria. “Os Fundos Airbus constavam na informação que a Parpública transmitiu aos novos responsáveis das Infraestruturas e Finanças a 9 dezembro de 2015. Estão em todos os arquivos que existem na Parpública”. Talvez, refere, não lhes tenha sido dada a relevância que justificava dar. “Nunca foi tema porque todas as pessoas entenderam que esses fundos não representavam um problema. Não foram tema não porque não fossem conhecidos. Ate há pouco tempo ninguém questionou a compra dos aviões e a que preço entraram na companhia”.

Tanto Centeno como Mourinho Félix, seu secretário de Estado, negaram ter registos dessa reunião, de 9 de dezembro, revelada pelo ex-presidente da Parpública, Pedro Pinto. “Houve uma transmissão exaustiva de informação do dossier TAP aos responsáveis que estavam nessa reunião”, manteve Pires de Lima. “A Parpública terá transmitido o dossier ao novo governo e a informação constou sempre nos arquivos da Parpública, que passaram a reportar aos novos responsáveis das Finanças”, assinalou.

“Lacerda Machado está sozinho na questão do Brasil”

Falando da “situação de falência” em que se encontrava a TAP quando foi vendida a Neeleman, Pires de Lima reforçou o papel da empresa de manutenção no Brasil, a VEM, para esses problemas financeiros. Admite que o valor “fortemente negativo” pelo qual a companhia foi avaliada deve-se ao Brasil, e sem essa operação “podia ter tido uma avaliação diferente, porventura positiva”.

“Lacerda Machado está sozinho nesta questão do Brasil”, considerou, questionado sobre as declarações do ex-administrador segundo o qual o Brasil foi o melhor negócio dos últimos 50 anos para a TAP. “Não vi nenhum membro do Governo, atual ou passado, a validar a compra da VEM. A autopsia desse negócio diz que custou mil milhões. Era responsável por parte substancial dos problemas financeiros da empresa”, detalhou.

Confrontado com o facto de o Governo de que fez parte ter “deixado andar” essa operação, Pires de Lima afirmou que a prioridade era privatizar a TAP incluindo a VEM. “Fechar teria custos muito substanciais do ponto de vista económico, financeiro e político. Até Lacerda Machado disse que ainda bem que foi a Comissão Europeia a obrigar ao fecho”. Essa operação, segundo citou Pires de Lima, terá custado 300 milhões de euros. Além de que, notou, essa separação não seria fácil. Nem “curial” do ponto de vista do interesse publico porque “venderíamos a parte boa e ficávamos com a parte tóxica”.

Terão sido quase os mesmos motivos, segundo Pires de Lima, que levou Neeleman a não fechar a operação do Brasil. Em primeiro lugar, era apenas um dos acionistas e deixou de ser maioritário em 2017. O Estado estava a 50% na TAP e a decisão tinha de ser tomada em conselho de administração. Além disso, “percebi que do ponto de vista político era difícil uma participada do Estado português fechar uma operação no Brasil”, porque isso comportava “riscos, contingências e era um ato pouco simpático. Não era uma decisão política fácil”.