A história do jornal O Independente (1988-2006) está ainda largamente por fazer, apesar das abordagens predominantemente políticas que incidiram sobre um dos seus “primeiros capítulos”, o anticavaquismo de direita. O forte impulso dado à renovação do jornalismo e do design de comunicação, com uma maior e mais qualificada presença da ilustração e da fotografia, prosseguiria muito para lá desses primeiros anos, com protagonistas que depois se dispersaram numa grande variedade de percursos e geografias profissionais, dentro e fora do país — e essa deriva também deve ser apreciada como um dos efeitos dessa experiência única e provavelmente irrepetível mas que teve e tem até hoje reverberações de diferente tipo, e não apenas na evocação mais ou menos saudosa dos seus leitores. Tendo feito parte dessa aventura, observo com particular atenção o que dela resultou, sucessos e fracassos incluídos, além das reconfigurações pessoais.
Falta memorialismo e falta sobretudo crítica historiográfica a essa experiência de exceção na qual um inesperado e assaz raro “ar de família” magnetizou jovens “jornalistas”, editores, fotógrafos, ilustradores e designers (agora diz-se diretores de arte) de talento, forjando com epidérmica facilidade uma linguagem comum que limou arestas de estilo e teve na revista Kapa (1990-93) um segundo campo de intervenção, não menos expressivo aliás, e no suplemento DNa (1996-2006) de Pedro Rolo Duarte um distinto sucedâneo, que soube colher os frutos do tempo, como joia recebida em herança numa bandeja de prata. É este um pequeno mundo que merece ser revisitado. Patrícia Viegas doutorou-se em 2017 com “K” É Capa. Design editorial e pós-modernismo em Portugal no início dos anos 90 (ainda aguarda um editor menos distraído…), António Araújo valorizou esta revista no seu O Mais Sacana Possível: a revista “Almanaque” (1959-1961), de novembro passado, e ainda há poucas semanas Sérgio Sousa Pinto reagiu com particular lucidez e escândalo ao tardio primeiro prémio literário atribuído a Miguel Esteves Cardoso — precisamente, para um feixe de crónicas do velho O Independente —, realçando a sua enorme, irrefutável, luminosa influência como cronista, crítico e diretor de publicações.
Lisboa Clichê de Daniel Blaufuks (Tinta da China, outubro de 2021; versão inglesa, março de 2023) é certamente uma revisitação daquele tempo de mudança, mas o seu ponto de vista pessoal, é demasiado condicionado pelo artista ávido de cosmopolitismo e reconhecimento — que julga lhe serem devidos por um deve e haver muito específico —, surgindo, aliás, em contraste absoluto com a “selvagem” bonomia de Álvaro Rosendo, que em fevereiro de 2020 já havia mostrado na Galeria Cisterna, de Lisboa, nada menos que 600 fotos desses anos 1980-90, compactamente expostas (“Aos Meus Amigos 2.0”, curadoria de Luís Gouveia Monteiro e uma folha de sala apenas).
Título: “88-98”
Organização: Pedro Guimarães, Tiago Casanova e Inês Gonçalves
Design: Joana Durães
Editor: XYZ Books
Páginas: 240
Inês Gonçalves vem agora, com este 88-98 preparado pelos editores da XYZ Books, Pedro Guimarães e Tiago Casanova, evocar e convocar esse seu e nosso tempo distante, e a sua obra de fotógrafa repartida por diferentes áreas de trabalho, mas colocando-se claramente já em perspetiva para o que faria depois nas geografias tropicais onde viveu ou que visitou, tanto em imagem fotográfica quanto em documentarismo cinematográfico — e tem na capa e contracapa deste livro um propósito de significativo destaque. Refiro-me aos álbuns Cabo Verde, com João Miguel Fernandes Jorge (Relógio d’Água, 1999), Goa. História de um Encontro com Catarina Portas (Almedina, 2000) e Agora Luanda com Kiluanje Liberdade, José Eduardo Agualusa e Delfim Sardo (Almedina, 2007); e também a vários portefólios, de Cuba à Ilha do Príncipe, e a filmes apresentados em festivais. De caminho, instituiu — sozinha — uma verdadeira revolução na representação visual da gastronomia portuguesa em obras de Alfredo Saramago lançadas pela Assírio & Alvim (cinco livros, de 1998 a 2003), depois de ter feito composições elegantes com as iguarias da Cerveja Solmar para uma reportagem n’O Independente sobre a Rua das Portas de Santo Antão, em Lisboa (imagens fundadoras que, todavia, não constam deste livro).
Na entrevista-conversa com os editores (pp. 13-24), Inês Gonçalves fala de Miguel Esteves Cardoso — “Tinha estudado em Inglaterra e adorava fotografia. A minha primeira entrevista com ele para o jornal não foi sobre trabalho, foi sobre o Avedon e o Irving Penn, que eram dos nossos preferidos” — em termos que ajudam a compreender o que então se passou. Miguel foi, aliás, também fotógrafo ele mesmo, e a quantidade e qualidade das polaroids que acompanharam as suas crónicas e traduções de poesia justificavam uma exposição que a sua irremovível preguiça não imaginou e quis fazer, e amigos ou outros não insistiram que se fizesse. “A entrevista — diz ainda Inês — foi apenas a conversar sobre os fotógrafos de que eu gostava e de que ele gostava. […] Entendíamo-nos muito bem.” Manuel Falcão, também do jornal, e por ela referido como uma das pessoas que nessa altura davam “extrema importância à fotografia”, é também fotógrafo e editor de livros de fotografia. E em 1994, no catálogo da exposição “Fotografias de Moda” de Inês Gonçalves na antiga Loja Olaio, outro colaborador de primeira linha d’O Independente, Rui Henriques Coimbra, escreve lapidarmente sobre os grandes fotógrafos de moda e as revistas da especialidade. “De repente, estava num mundo que era o meu”, reconhece Inês — e não é para menos.
88-98 enfeixa os seus diferentes trabalhos sem a mínima especificação diacrónica e, reproduzindo as publicações em que saíram, dá-nos todo o contexto gráfico-visual da época, opção que pode ferir os ciosos das tiragens vintage e o protocolo habitual deste tipo de publicações, mas tem a enorme vantagem de nos aproximar o mais possível — de uma forma quase radical, diria — da experiência dos leitores daqueles anos dourados. E sem nunca perder o sentido, e o gosto ou a arte, de fazer da criação dum livro algo como a montagem de um puzzle, como reconhecido na p. 23, há sequências que nos fazem sorrir pela intencionalidade duma narrativa improvável mas aberta à nossa livre imaginação.
Fica sobretudo a certeza de que Inês Gonçalves — com a sua desconcertante candura — em todos os seus diferentes registos, do glamour da moda lisboeta às despojadas ilhas tropicais, sabe muito bem o que quer e claramente explicita com o senhor cabo-verdiano de fato domingueiro e chapéu ao peito, em sinal de respeito e fé: “Retratar as pessoas de forma a que apareçam com dignidade” (p. 19). Não pode ser mais perene e atual.