Um grupo de advogados e magistrados, que inclui alguns dos nomes mais conhecidos da justiça portuguesa, publicou esta semana uma carta aberta apelando a todos os profissionais de justiça que combatam a “cultura de excesso” existente no setor, que leva a que os processos judiciais acumulem milhares de páginas e provoca longos atrasos na administração da justiça.

Manifesto justiça + célere. “Isto é autocrítica”

Na carta aberta, publicada esta segunda-feira na íntegra no Observador, os signatários lembram que a Constituição portuguesa determina que as decisões definitivas dos casos em tribunal sejam proferidas “em prazo razoável e mediante processo equitativo” e consideram que uma demora excessiva na aplicação da justiça não serve os interesses nem de vítimas nem de suspeitos.

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“Importa impedir que, perante a demora, as primeiras se sintam desamparadas e lancem mão de expedientes de vindicta privada e os segundos ardam indefinidamente no purgatório da fogueira mediática sem fundamento estabelecido”, diz a carta aberta, assinada por figuras como a procuradora-geral adjunta jubilada Maria José Morgado, o advogado Alfredo Castanheira Neves, o antigo juiz conselheiro Santos Cabral ou o antigo procurador-geral distrital de Coimbra Euclides Dâmaso.

Contra a prolixidade na justiça penal

Para os subscritores da carta aberta, um dos principais motivos para a demora na aplicação da justiça prende-se com a “prolixidade excessiva das peças produzidas pelos vários operadores judiciários”, que por vezes chega “ao ponto de descaracterizar todo o sentido do processo e da decisão”.

A dimensão dos documentos judiciais foi, dizem os subscritores, aumentando substancialmente ao longo das últimas três décadas. “Para o que se continha em dez páginas passaram a utilizar-se cem”, diz a carta, assinada também pelo procurador António Lima Cluny, representante português no Eurojust (agência da UE para a cooperação judiciária), pela juíza-conselheira Maria do Carmo Silva Dias e por advogados como Manuel Magalhães e Silva, Rogério Alves, Paulo Saragoça da Matta ou Ricardo Sá Fernandes.

Os subscritores criticam mesmo a falta de capacidade de síntese e o excesso de descrições que surgem nos documentos que integram os processos judiciais — e que se repetem múltiplas vezes ao longo dos processos.

“Nas acusações misturam-se os factos caracterizadores da infração, exigidos por lei, com a narrativa das diligências de recolha da respetiva prova, transcrevendo-se muitas vezes os relatórios policiais sem preocupações de depuramento. Nas peças de defesa imperam atitudes de excesso acautelatório, motivadas por subliminar desconfiança, que levam a repetições constantes e a conclusões caricaturais, tal a ausência de síntese”, dizem.

“As decisões judiciais, já inquinadas à partida por esses pressupostos, são o inferno de Dante em laudas burocráticas: os relatórios alongam-se, as citações abundam e o essencial perde-se no meio de toda essa palha”, concluem os subscritores.

A carta aberta salienta também que “não há, sem uma intrusão excessiva e quiçá indesejável de instrumentos de inteligência artificial no campo das decisões judiciárias, capacidade humana para absorver devidamente, em prazo razoável, o conteúdo de quatro ou cinco mil páginas de texto denso e minucioso e daí extrair conclusões que terão forçosamente de ser rigorosas”.

Os subscritores da carta aberta frisam que a enorme dimensão das peças processuais pelo uso de uma linguagem longa e desnecessária, somada ao “predomínio da forma sobre a substância e um positivismo extremado”, contribui para a “fermentação dos megaprocessos em que naufraga qualquer intenção de Justiça atempada”.