As lesões do músculo cardíaco associadas à vacina de mRNA contra a Covid-19 “foram mais comuns do que se pensava anteriormente”, conclui um estudo suíço com 777 profissionais de saúde vacinados. Mas os autores acrescentam que os sinais foram “leves e transitórios” e ninguém teve nenhum problema cardíaco nos 30 dias que se seguiram à toma da vacina. O que significam então estas conclusões e até que ponto devemos ficar preocupados?

Como foi feito o estudo?

Para determinar uma potencial lesão do miocárdio (músculo do coração), a equipa do Hospital Universitário da Basiléia (Suíça) fez análises de sangue a todas as pessoas que receberam uma vacina de reforço da Moderna (mRNA-1273) no terceiro dia após a vacina. Dessas análises, usaram os valores aumentados de troponina, uma proteína responsável pela contração muscular e cujos valores elevados servem para confirmar um enfarte do miocárdio.

Entre os 777 profissionais de saúde vacinados, que não tinham história prévia de problemas cardíacos, 40 apresentaram níveis acima do limite recomendado de troponina (um limite que é muito mais baixo para as mulheres do que para os homens). Entre estes, 18 casos poderiam ter uma explicação alternativa para o aumento da troponina e, para 22 (20 mulheres e dois homens), os investigadores não identificaram uma explicação alternativa, conforme os resultados apresentados na revista científica European Journal of Heart Failure. São estes 22 casos (ou 2,8% dos vacinados) que levaram os investigadores a concluir que era mais frequente do que esperado.

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“Estas descobertas não me surpreendem de todo e não mudam nada em relação à minha apreciação de risco-benefícios das vacinas. Estes pequenos aumentos de troponina provavelmente não são eventos de significado clínico“, disse James de Lemos, chefe da Divisão de Cardiologia d0 Centro Médico do Sudoeste da Universidade do Texas (Dallas), que não esteve envolvido no estudo, citado pela plataforma de fact-checking Lead Stories.

Os níveis de proteína troponina T medida são equivalentes aos que se esperariam encontrar no sangue após o exercício físico, refere no Twitter Marc Veldhoen, imunologista no Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa. 

Que limitação apresenta esta análise?

Os autores do estudo admitem que não têm valores de troponina pré-vacinação com os quais possam depois comparar os valores do terceiro dia após a toma da vacina, logo não sabem qual o nível base de cada pessoa e que aumento representam as análises — o que, segundo os próprios, é uma limitação do estudo.

No quarto dia, as pessoas que tinham níveis aumentados voltaram a fazer análises e praticamente todas tinham diminuído os níveis de troponina e metade delas estavam dentro dos níveis normais. Ou seja, se a análise tivesse sido feita apenas ao quarto dia, metade das pessoas já não estariam acima dos níveis recomendados e, se tivesse sido feita ao segundo dia, os valores também seriam diferentes, como referem os autores.

Sem valores de base e sem uma avaliação ao longo do tempo, é mais difícil determinar o significado destes valores de troponina acima dos limites pré-definidos — ou até a sua importância clínica. No caso de enfarte do miocárdio, por exemplo, os níveis podem continuar altos por 10 dias, mas aqui não houve qualquer reporte de incidente cardíaco nos 30 dias após a vacina.

As consequências de longo-prazo das lesões do miocárdio relacionadas com a vacina, e detetadas por elevações transitórias e maioritariamente leves ao segundo ou terceiro dia, são desconhecidas, […] mas são esperados bons resultados a longo-prazo”, escreveram os autores no artigo científico.

Devemos deixar de usar este tipo de vacina?

Os investigadores do Hospital Universitário da Basiléia continuam a defender o uso de vacinas contra a Covid-19 e avisam que os resultados presentes devem ser confrontados com os das lesões cardíacas provocadas pela infeção com o coronavírus SARS-CoV-2. “Antes das vacinas contra a Covid-19 estarem disponíveis, a incidência e extensão das lesões do miocárdio associados à infeção [Covid-19] era muito mais altas do que observado neste estudo de monitorização ativa após uma vacinação de reforço”.

Os autores concluem: “A Covid-19 está associada a um risco substancialmente maior de miocardite do que as vacinas de mRNA e a miocardite relacionada com a Covid-19 mostrou ter uma taxa de mortalidade maior do que a miocardite relacionada com a toma de vacinas de mRNA. Logo, para a maioria dos indivíduos, a relação risco-benefício geral da vacinação de reforço permanece muito favorável“.

Algum outro estudo teve conclusões semelhantes?

O médico James Lawler, da Divisão de Doenças Infecciosas da Centro Médico da Universidade do Nebraska, disse, citado pela Lead Stories, que os níveis de troponina usados para medir os danos no coração são muito sensíveis e podem variar rapidamente. O médico destaca que os aumentos dos níveis de troponina detetados são ligeiros e parecem voltar ao normal rapidamente.

Para James Lawler, só dois casos parecem ter relevância clínica — os que apresentaram dores no peito, apesar de não se ter detetado nada no eletrocardiograma —, “pelo menos, alcançaram uma definição fraca de miocardite, mas sem qualquer evidência de lesão ou compromisso”. “Isso dá dois em 777 participantes no total (ou 0,26%)”, concluiu.

Esta estimativa de 0,26% casos contrasta com os 2,8% avançados pela equipa suíça, mas está muito mais próximo dos resultados de um outro estudo, israelita, com a vacina da Pfizer (BNT162b2). A investigação coordenada pela Universidade Hebraica, em Jerusalém, também analisou a troponina em profissionais vacinados com uma dose de reforço da vacina (a quarta dose) e concluiu a prevalência de lesões do miocárdio era de 0,62%.

As lesões do miocárdio foram demonstradas em dois participantes [num total de 324], um teve sintomas ligeiros e outro estava assintomático. Ambos tiveram eletrocardiogramas e eletrocardiografias normais”, escreveram os autores na revista científica European Journal of Heart Failure.

Ambos os estudos são de monitorização ativa, mas uma das principais diferenças entre os dois trabalhos é que a equipa israelita analisou os níveis de troponina de base (no dia da vacinação) e considerou como níveis aumentados quando as medições (ao dia 2-4) estavam 50% acima desse nível base — e também usou dos limites considerados pela equipa suíça.

Assim, 21 pessoas tinham os níveis de troponina aumentados logo no dia da vacinação e 27 tinham-nos aumentados no segundo teste, mas apenas dois tinham um aumento de 50% em relação ao nível base. Estas duas pessoas reuniam os critérios para uma lesão do miocárdio e fizeram exames para isso, mas nenhuma preencheu os critérios para ser considerado uma miocardite (inflamação do músculo do coração).

O que pedem os investigadores com base nos resultados?

A maior parte dos estudos anteriores sobre o risco de problemas cardíacos após a toma de vacinas foi feito por monitorização passiva, ou seja, avaliando os doentes que recorriam aos serviços de saúde com queixas. Neste caso, a monitorização foi ativa, todos os vacinados foram analisados para se identificarem sinais mais discretos do que as dores no peito (que só aconteceu em duas pessoas com os níveis de troponina aumentados) ou alterações no eletrocardiograma (que não aconteceu em nenhum dos casos).

Apesar de nenhuma pessoa ter apresentado problemas cardíacos ao fim de 30 dias e de os vacinados terem apresentado o mesmo tipo de queixas (efeitos secundários) quer tivessem níveis aumentados de troponina ou não, os investigadores apelam a que mais estudos sejam feitos sobre o risco de arritmia ou falência cardíaca, a longo-prazo, depois da vacina com mRNA.

Com este trabalho, os autores pretendem que os fabricantes tenham mais atenção às dosagens e composição de futuras vacinas e que as conclusões possam ajudar os doentes, médicos e autoridades públicas a tomarem decisões informadas no que diz respeito a futuras vacinas de reforço.

Qual foi o impacto nos medias, redes sociais e internet?

No último parágrafo do artigo científico, os investigadores escreveram: “Em conclusão, usando uma monitorização ativa, verificou-se que as lesões do miocárdio leves e transitórias associadas à vacina m-RNA-1273 são muito mais comuns do que se pensava antes. Ocorreram em uma em cada 35 pessoas, foram ligeiras e transitórias, e mais frequentes nas mulheres do que nos homens”.

Os críticos das vacinas aproveitaram a mesma e deturparam a informação para “um caso de miocardite [inflamação do coração] por cada pessoa vacinada com a Moderna”. Mas não é isso que diz a equipa suíça: o artigo é claro ao dizer que não foram registadas complicações cardíacas ao fim de 30 dias e que os sinais identificados ao terceiro dia não são nem graves nem permanentes. Mais, um responsável de saúde pública nos Estados Unidos tentou mesmo associar a morte de dois desportistas à toma das vacinas de mRNA, mas não há qualquer evidência que tenha sido essa a causa de morte.

Caso houvesse realmente o risco de um incidente cardíaco por cada 35 pessoas vacinadas, tendo em conta os milhões de vacinas já administradas, já teria sido identificado e as autoridades de saúde já teriam tomado medidas sobre o assunto. Os próprios autores do artigo falam em sinais leves e transitórios e continuam a apoiar a toma de vacinas para proteger da doença Covid-19.

“Infelizmente, mesmo agora no verão de 2023, parece difícil ter uma discussão equilibrada sobre este efeito secundário [lesão do miocárdio]. Algumas pessoas [como as referidas acima] exageram em larga escala, outros ignoram completamente“, disse Christian Mueller, responsável pelo estudo suíço, citado pela Lead Stories. “Esta investigação deve ajudar e vai ajudar na formulação de vacinas ainda mais seguras, evitando ou pelo menos reduzindo a prevalência deste efeito secundário.”

O Observador contactou o coordenador do estudo suíço com perguntas sobre a metodologia e conclusões da investigação científica, mas até ao momento da publicação deste artigo não tinha recebido resposta.