Durante um dia e meio — esta quinta-feira, 31 de agosto, e na manhã de sexta-feira, 1 de setembro — o setor livreiro (e não só) vai reunir-se na Book 2.0, uma conferência promovida pela Associação Portuguesa de Escritores e Livreiros (APEL), no antigo Museu Nacional dos Coches, em Lisboa, para refletir sobre o presente e o futuro da leitura em Portugal.
“Há algum tempo que andávamos a ver de que forma poderíamos trazer ao espaço público uma conversa que muitas vezes nos parece presa em gabinetes dos editores ou dos decisores políticos”, explica ao Observador o presidente da APEL, Pedro Sobral. “E era muito importante ter todos os agentes do setor envolvidos.”
Editores, escritores, políticos, jornalistas, especialistas em diversas áreas e até artistas que usam a palavra como ferramenta — caso do músico Tristany ou dos humoristas de improviso Commedia a La Carte — estarão juntos a debater uma série de temas em torno do setor e da própria importância do conceito de leitura.
“De geração em geração, vou ouvindo o vaticínio de que o livro será morto. E não acontece. E ouvimos também muito que é imperativo e fundamental a leitura no crescimento mental e físico, mas depois não nos parece que haja medidas que possam ajudar a que isso aconteça”, acrescenta Pedro Sobral, explicando por que decidiram agir agora.
O presidente da APEL relembra que Portugal “continua com os índices de leitura mais baixos da Europa”, apesar do “dado animador” que representa o aumento da venda de livros nos últimos anos. Embora seja um indicador que parte de uma “base muito baixa”, Pedro Sobral acredita que “traz esperança para o futuro”, visto que o crescimento na aquisição de livros se está a verificar na faixa etária entre os 15 e os 34 anos.
“Isso, obviamente, é muito positivo. O que é importante é transformar este movimento que é conjuntural em algo estrutural. Porque muito deste movimento nasce em plataformas digitais como o TikTok ou o Instagram. Sabemos que são plataformas que marcam trends — e a palavra trend aqui preocupa-me, porque normalmente é passageira. Portanto, queremos pegar neste sinal muito positivo — há muito que não víamos as novas gerações a ler e a comprar e a partilhar as suas leituras — e torná-lo estrutural. Porque a leitura é um hábito.”
Além disso, o presidente da APEL realça que é essencial contribuir para um aumento da leitura de forma transversal às classes económicas e às regiões do país, uma vez que o acesso ao livro não é igual para todos. “Este índice de compra de livros está a aumentar mas está muito concentrado na Grande Lisboa e no Grande Porto.”
Pedro Sobral adianta que a associação, em colaboração com o Ministério da Cultura, está a desenvolver um projeto de cheque-livro. “Será que pode ajudar numa idade tão desafiante como são os 18 anos? Infelizmente, nem todas as famílias têm bibliotecas em casa. Há muitos sítios onde o único contacto com o livro é com as bibliotecas públicas ou escolares, nem existem pontos de venda.”
Da inteligência artificial à inclusão no setor
A Book 2.0 vai dividir-se em três pilares temáticos. O primeiro é o futuro da edição na era digital. Numa realidade de audiolivros e ebooks, em que cada vez mais pessoas recorrem a dispositivos como tablets para ler e em que a educação assenta cada vez mais em conteúdos digitais, o setor quer discutir uma série de problemáticas em torno desta questão — sendo que nunca está em cima da mesa o fim do livro enquanto objeto físico. “Nada disto mata o papel. Mas permite que o livro continue a ser um objeto central na leitura, uma forma pedagógica que pode ser usada no sistema de ensino.”
O responsável pelo departamento de Inovação da sucursal portuguesa da tecnológica Capgemini, Eduardo Ferreira, irá fazer uma masterclass sobre as oportunidades e os desafios que a inteligência artificial apresenta ao setor livreiro.
“Temos de pensar que oportunidades existem e o que é que temos de resolver. Porque parece-nos que a inteligência artificial pode trazer uma série de vantagens, mas levanta questões relativamente ao copyright e aos direitos de autor. Como é que endereçamos isso? Através de um novo aparelho jurídico? De novas políticas que permitam regular esse problema? É fundamental discutir todas estas questões.”
O segundo capítulo da conferência foca-se na sustentabilidade e na inclusão. Pedro Sobral acredita que o setor, pela sua natureza “progressista”, tem de estar na linha da frente destas temáticas. No caso do ambiente, admite que os livros têm uma “pegada de carbono importante”. “Mas achamos que esta discussão não se resume a substituir o papel pelo digital, de todo. Quer o livro em papel quer os formatos digitais têm uma pegada de carbono e temos de encontrar formas de regular isso e aumentar a nossa missão de diminuir muito essa componente.”
Já o terceiro foca-se nas novas formas de ensino — mais digitais — e o papel do livro e da leitura nesse paradigma. Ao todo, dezenas de oradores estão divididos por conversas e debates curtos, numa “agenda compacta” para se conseguir encaixar tudo em apenas um dia e meio.
“Que tipo de leitura estamos a fazer? É de facto relevante ou não para o crescimento de um ser humano? Como é que a leitura e o livro são ferramentas que permitem uma perceção crítica da sociedade? Como é que as apresentações de livros, debates com escritores, podem ser um trabalho remunerado? Como é que nós aumentamos o papel das mulheres no conselho executivo das várias editoras? Como é que podemos diminuir a pegada de carbono? Ou olhar para a leitura digital — que tem aumentado bastante em Portugal — como uma oportunidade? É esta ambição que leva a juntar muita gente em pouco tempo”, explica Pedro Sobral.
Autores como Isabel Alçada, Ana Maria Magalhães, Dulce Maria Cardoso, João Tordo, Jeanine Cummins, Afonso Cruz, Maria Francisca Gama, Rodrigo Guedes de Carvalho, Helena Magalhães, Rita da Nova e Tânia Ganho estarão presentes. Os painéis contam ainda com personalidades como o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa; o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva; o ministro da Educação, João Costa; a diretora do Plano Nacional de Leitura, Regina Duarte; o professor e psiquiatra Daniel Sampaio; o neuropediatra e autor Nuno Lobo Antunes; ou o autor e político Paulo Portas, entre outros.
Vários editores nacionais e estrangeiros, de diversas empresas, também irão participar nas conversas. E há players internacionais de relevo, como o CEO da Rakuten Kobo, o canadiano Michael Tamblyn; ou a responsável de políticas públicas e relações governamentais do TikTok para Portugal e Espanha, a espanhola Yasmina Laraudogoitia. A programação completa pode ser consultada no site da Book 2.0.
No final, será produzido um relatório para “condensar ações e os compromissos que os agentes devem tomar”. “O que é que os editores podem fazer nestas áreas? O que é que os decisores políticos podem fazer? Para que os índices de leitura sejam maiores e acima de tudo menos desiguais.”
A ideia é que esta venha a ser uma conferência anual, sempre a acontecer nesta altura do ano, para que também sirva de balanço em relação aos compromissos estabelecidos nas edições passadas. “Fizemos? Não fizemos? Conseguimos de facto começar a olhar para o livro não como um bem de luxo mas como um bem essencial, tal e qual como a água, os alimentos básicos ou o direito à habitação? Todos os anos vamos querer sentar-nos em agosto ou no princípio de setembro a dizer: o que fizemos em relação a estes compromissos sobre os quais falámos no ano passado? E acrescentar outros, porque a realidade vai-se alterando de forma vertiginosa.”
O objetivo passa por interromper as tarefas do dia a dia e estabelecer uma visão de “médio e longo prazo”. Pedro Sobral adianta que a primeira edição do evento se encontra esgotada e que tem sentido as pessoas “entusiasmadas”. “É importante que esse entusiasmo agora passe à ação. Que todos nós venhamos com o nosso trabalho de casa. Não vamos fazer grandes compromissos, de que daqui a seis meses somos o segundo maior país no índice de leitura, não é isso. São pequenos passos, pequenas coisas que podemos fazer e que poderão ajudar a que a leitura tenha um papel central na vida de todos os portugueses.”
Acima de tudo, quer-se pensar na leitura como uma “necessidade básica”. “Isto é uma coisa muito portuguesa: vive-se muito no mito de que a leitura é só para uma certa classe social. Que, infelizmente, nalguns casos é: pelas barreiras económicas, pelos salários baixos, pela desigualdade… Mas não tem de ser verdade. Aquilo que precisamos de fazer, e os decisores políticos têm de ter essa perceção, é colocar o livro num cabaz básico de sobrevivência”, defende o presidente da APEL.
“Oiço muito dizer-se aqui em Portugal: só os países desenvolvidos é que têm índices de leitura elevados. Eu digo exatamente o contrário: os países com índices elevados de leitura é que conseguem ser economicamente desenvolvidos. E enquanto não mudarmos este chip e não percebermos que a leitura está na base — ao lado de uma alimentação saudável e de uma casa digna — vamos ter muitas dificuldades. Acredito mesmo que, se conseguirmos fazer isto, Portugal daqui a uma, duas ou três gerações vai estar muito melhor.”