Censura. É essa a acusação que centenas de investigadoras fazem à Routledge depois de a editora britânica ter, em julho, apagado do livro “Sexual Misconduct in Academia” (Má Conduta Sexual na Academia) o capítulo no qual três académicas relatam o assédio que terão sofrido numa instituição portuguesa de ensino superior. No imediato, lembram que “o capítulo já tem vida própria e continua a circular” e exigem à editora que “republique imediatamente o livro completo, incluindo o artigo”. Os signatários da carta (na sua maioria mulheres) são os mesmos do Movimento Todas Sabemos, autoras do manifesto com o mesmo nome.

Além disso, dirigem-se aos académicos referidos no artigo a quem pedem que parem com “toda a perseguição às autoras e às outras vítimas que se manifestaram”. A 31 de agosto, a Routledge decidiu retirar o capítulo 12 do livro sem falar antecipadamente com as editoras do livro coletivo.

O Professor-Estrela, o Aprendiz, a Vigilante. Como três investigadoras relatam os assédios que terão Boaventura Sousa Santos como peça-chave

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Um dos docentes acusado no capítulo — a quem chamam Professor Estrela — será Boaventura Sousa Santos, que sempre desmentiu as acusações. No entanto, depois de publicado o livro, em abril deste ano, surgiram mais vozes a acusar o então diretor emérito do CES — Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

“Foi com grande perplexidade, seguida de repulsa, que recebemos a notícia de que a Routledge decidiu retirar o capítulo ‘The Walls Spoke When No One Else Would’ do livro Sexual Misconduct in Academia”, começa o texto enviado ao Observador pelas autoras do manifesto Todas Sabemos, que reuniu mais de 900 assinaturas na altura em que surgiu a polémica. Em abril passado, o manifesto foi a forma de os académicos expressarem a sua “total solidariedade com as autoras e demais vozes vindas a público”.

“Tanto quanto sabemos, não houve a menor transparência sobre a retirada do capítulo pela Routledge. É, de facto, profundamente problemático que uma editora tão prestigiada desconsidere a posição e os protestos das editoras do livro e das autoras do capítulo”, lê-se no texto enviado ao Observador e que foi encaminhado pelos signatários à equipa editorial da Routledge. “Nas palavras de Isabella Gonçalves, deputada brasileira que se identificou como uma das vítimas mencionadas no capítulo, essa eliminação constitui um ‘escândalo internacional’.”

Texto de três investigadoras leva Centro de Estudos Sociais a investigar denúncias de assédio sexual. Boaventura de Sousa Santos implicado

O capítulo apagado — “The walls spoke when no one else would. Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia” — é assinado por Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom e fazia parte da edição original de um livro coletivo publicado pela Routledge (editora multinacional britânica especializada em livros académicos nas áreas de ciências humanas e sociais).

Routledge acusada de “promover o encobrimento do assédio”

Na carta enviada à editora britânica, os signatários acusam a Routledge de um “ato indefensável e infundado de censura e desrespeito às obras científicas que ultrapassam as abordagens patriarcais ocidentais dominantes — atualmente questionadas em todo o mundo”.

Ao censurar o capítulo, defende-se no texto, a Routledge não está apenas a ignorar e a desrespeitar os procedimentos académico-científicos. “Sendo uma editora prestigiada, está também a promover o encobrimento do assédio sexual e dos abusos de poder na academia, compactuando com mecanismos de silenciamento que, desde há muito, se conjugam no sentido de sufocar a voz de quem denuncia estes abusos.”

O capítulo assinado por Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom analisa as complexidades do assédio sexual estrutural e os abusos de poder na academia através do método autoetnográfico e defende que esse tipo de conduta é um problema generalizado dentro da academia. Os signatários da carta enviada à Routledge sublinham que o capítulo em causa está em conformidade com os critérios de contribuição científica, é de leitura proveitosa, e escrutina o enraizamento do problema na academia.

Além disso, argumentam que a sua publicação levou a que muitas investigadoras compreendessem e processassem, “a um nível empírico e teoricamente mais profundo”, alguns dos abusos de poder que viveram na academia. “Esse silêncio ensurdecedor, que a Routledge amplia, corrói os centros do saber e ostraciza e destrói paulatinamente centenas de carreiras e pessoas, sobretudo de mulheres e de pessoas mais expostas a preconceitos racistas, etnocêntricos e classistas.”

A terminar o texto, lembra-se o caso específico de assédio sobre mulheres indígenas. “Este é o caso de Miye Nadya Tom, nativa americana dos EUA e coautora do capítulo, e de Moira Millán, ativista Mapuche que apoiou as alegações do artigo e, mesmo antes da sua publicação, relatou a sua experiência de abuso quando foi convidada pelo referido centro de investigação, como oradora num seminário de pós-graduação.”

Moira Millán, a indígena argentina que acusa Boaventura de tentativa de abuso: “Ele que me olhe na cara, nos olhos, e negue o que me fez”

Carta de advogado português levou ao desaparecimento do capítulo

Erin Pritchard e Delyth Edwards, as duas autoras do livro, explicaram em declarações à Times Higher Education que a carta de um advogado português estará na origem do desaparecimento do capítulo sobre assédio sexual, uma informação que o Diário de Notícias já tinha avançado. O documento será uma carta “cease and desist” (cessar e desistir), ou seja, um pedido para cessar uma determinada atividade, sob pena de ação judicial.

“A 31 de agosto, a Routledge decidiu retirar permanentemente o capítulo 12 do livro e devolveu os direitos do capítulo aos autores, por e-mail”, explicaram, por escrito, as duas autoras à  Times Higher Education. “Esta decisão final não foi comunicada ou acordada connosco, enquanto editoras. Estamos muito desiludidas com esta decisão da Routledge de decidir retirar permanentemente o capítulo e possivelmente o livro.”

Na opinião das investigadoras, a decisão da editora equivale “a apoiar aqueles que tentam silenciar” o livro, com “tentativas mínimas” para reagir a ameaças legais, “sem defender a liberdade académica ou os direitos dos sobreviventes de assédio sexual de falarem sobre as suas experiências”.