Uma equipa de investigadores brasileiros identificou, pela primeira vez, um possível cruzamento entre um cão doméstico e uma raposa-das-pampas (ou graxaim-do-campo no Brasil). A descoberta foi relatada na revista científica Animals e divulgada no início de agosto deste ano.

Tudo começou há dois anos, quando um animal foi atropelado na cidade de Vacaria, no estado de Rio Grande do Sul (Brasil). Notava-se que a fêmea pertencia à família dos canídeos (que inclui lobos, raposas, cães ou coiotes), mas o biólogo que a recolheu, Herbert Hasse Junior, não conseguiu identificar a que espécie pertenceria — as quatro espécies de canídeos selvagens que existem no estado de Rio Grande do Sul (que faz fronteira com o Uruguai a sul e com a Argentina a oeste) apresentam características diferentes do animal encontrado.

Ainda assim, o biólogo considerou que se trataria de um animal selvagem e encaminhou a fêmea para o Núcleo de Conservação e Reabilitação de Animais Selvagens (Preservas) do Hospital Veterinário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). (Também em Portugal, os animais selvagens feridos, debilitados ou encontrados ilegalmente em cativeiro são acolhidos e reabilitados em centros específicos com vista à sua potencial reintegração na natureza — existem 11 identificados no site do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas.)

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A raposa-das-pampas (Lycalopex gymnocercus) vive no sul da América do Sul — Vinicios de Moura/Wikimedia Commons

Quando a veterinária Flávia Ferrari, no Preservas, se preparava para tratar o animal considerou que o mais provável era que fosse um cão. O tamanho e a cor da pelagem (muito escura) não permitia que a fêmea fosse classificada como nenhum dos canídeos selvagens da região. Foi assim transferida para o canil que trata de animais domésticos, como os cães, conta a BBC Brasil.

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Já no canil, o animal recusava-se a comer ração como os restantes cães que lá se encontravam, mas aceitou prontamente alimentar-se de pequenos roedores. O caso não seria absolutamente estranho visto que os cães assilvestrados (animais domésticos que aprendem a viver como animais selvagens, na natureza) também podem aprender a caçar para comer — em Portugal há relatos de matilhas de cães assilvestrados que atacam pessoas e outros animais. Ainda assim, a fêmea misteriosa que ladrava como um cão voltou ao centro de recuperação de animais selvagens.

Seria este animal um híbrido entre um cão doméstico (Canis lupus familiaris), muito mais próximo dos lobos (Canis lupus), com um dos canídeos selvagens da América do Sul? Os investigadores analisaram os genes, contaram os cromossomas e estudaram o material genético das mitocôndrias (uma estrutura das células que é herdade apenas da mãe e que têm ADN próprio) e concluíram que sim, o animal era um híbrido de cão com raposa-das-pampas (Lycalopex gymnocercus) — duas espécies muito distantes na árvore evolutiva dos canídeos (divergiram há cerca de 6,7 milhões de anos).

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O lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) é a maior espécie de canídeo da América do Sul — Rufus46/Wikimedia Commons

A fêmea misteriosa tinha 76 cromossomas em cada célula, tantos quantos os do lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), mas esta espécie tem uma pelagem e traços físicos tão distintos (pode ter um 1,6 metros de comprimento e pesar 30 quilos) que não conseguiram encontrar semelhanças com o animal que tinham pela frente. Além disso, as mitocôndrias revelaram claramente que a mãe desta fêmea era uma raposa-das-pampas.

O cão tem 78 cromossomas no núcleo das células e a raposa-das-pampas tem 74, o que pode parecer incompatível com o número de cromossomas encontrado na fêmea atropelada, mas até tem sentido: o animal terá herdado metade dos cromossomas do pai (39) e metade dos cromossomas da mãe (37), o que dá um total de 76. Para o confirmar, a equipa que juntou investigadores da UFRGS e da Universidade Federal de Pelotas identificou algumas características genéticas que existem exclusivamente nos cães e outras que são exclusivas da raposa-das-pampas.

Os autores do artigo admitem que não têm informação suficiente para determinar com certeza se esta fêmea era um híbrido ou uma variação dentro da população de raposa-das-pampas (ainda que não tenham encontrado outro animal com as mesmas características físicas nas fotografias que pesquisaram), mas consideram que a metodologia utilizada faz uma indicação válida nesse sentido.

Mesmo que o cruzamento entre duas espécies tão distintas seja raro e inesperado, com uma elevada probabilidade de não resultarem nascimentos ou de as crias morrerem precocemente, os investigadores encontraram mais uma justificação para este fenómeno descrito pela primeira vez entre estas duas espécies: “A região geográfica onde o híbrido foi encontrado pertence ao bioma Mata Atlântica, o bioma mais antrópico [com mais intervenção humana] do Brasil. A antropização do habitat da raposa-das-pampas fez com que esta espécie seja tolerante à perturbação humana, aumentando a sobreposição da espécie com o cão doméstico, o que pode ter facilitado a hibridação”.

Os investigadores defendem que se estude até que ponto estes cruzamentos entre cães e raposa-das-pampas são frequentes em ambiente natural. Isso significaria uma intromissão de genes de cão na espécie selvagem podendo significar uma pior adaptação dos híbridos ao ambiente onde vivem ou uma maior suscetibilidade às doenças transmitidas pelos cães, colocando em risco a espécie selvagem.

Sobre esta fêmea misteriosa, no entanto, já não se poderá ter mais informação. Depois de castrada foi transferida para o Mantenedouro São Braz, um santuário zoológico sediado também no estado de Rio Grande do Sul, mas os investigadores descobriram recentemente que terá morrido há cerca de meio ano e desconhecem ainda quais as causas, avançou a BBC Brasil.