A justiça do estado de Nova Iorque decretou que um conjunto de pinturas do artista austríaco Egon Schiele, roubadas pelos nazis a um colecionador judeu na década de 1930 e que estavam espalhadas por vários museus e coleções privadas, deveriam ser devolvidas aos herdeiros do dono original, num veredito que pôs fim a um dos mais antigos casos de restituição de obras de arte roubadas durante o Holocausto. A devolução das obras aconteceu esta quarta-feira, com uma cerimónia no gabinete do procurador distrital de Manhattan, que contou com a presença dos descendentes do proprietário original.
As pinturas, sete ao todo, pertenciam a Fritz Grünbaum, um conhecido comediante e cantor da época, abertamente crítico dos nazis e que foi detido em Viena, em 1938. Acabou por ser enviado para o campo de concentração de Dachau, na Alemanha, onde terá sido forçado a assinar documentos abrindo mão de todas as suas propriedades, incluindo a sua coleção de arte. Grünbaum viria a morrer no campo, em 1941.
Nas décadas seguintes, as obras de arte foram passando de mão em mão, com os herdeiros de Grünbaum a tentarem durante quase três décadas reaver as pinturas de Schiele. O caso, e o processo judicial que corria em Nova Iorque, vinha sendo acompanhado de perto no mundo da arte; Timothy Reif, um dos descendentes do proprietário original, afirmou ao New York Times que o veredito “marca o passo e a agenda para todos os casos futuros” em torno de propriedades roubadas à comunidade judaica pelo regime nazi.
“Estamos a devolver estas lindas obras, estes desenhos, aos seus legítimos donos, à família [de Grünbaum]”, referiu o procurador de Manhattan, Alvin Bragg, na cerimónia desta quarta-feira. “Apesar dos horrores, da tragédia e da destruição causada pelos nazis, não é demasiado tarde para dar a conhecer ao mundo a história de pessoas incríveis como o Sr. Grünbaum”, acrescentou. O processo que corria no gabinete de Bragg dizia respeito a um conjunto de obras que passaram pelas mãos de um colecionador nova-iorquino, o que deu jurisdição à procuradoria estatal para iniciar uma investigação.
As sete obras retornadas provieram de vários museus e coleções privadas, dentro e fora de Nova Iorque e que, contactados pelas autoridades, concordaram em abrir mão dos objetos. O Museu de Arte Moderna de Nova Iorque cedeu Rapariga a calçar um sapato (1910), uma aguarela e carvão em papel e Prostituta (1912), uma aguarela e lápis em papel. Já o Museu de Santa Barbara, na Califórnia, tinha em sua posse Auto-Retrato (1910), carvão e aguarela em papel castanho e Retrato da mulher do artista, Edith, (1915), um desenho a lápis. Ronald Lauder, presidente do Congresso Mundial Judaico e ativista pela restituição de judeus afetados pelo Holocausto, tinha em sua posse a pintura Amo a Antítese (1912), uma aguarela e lápis em papel. Por fim, o colecionador de arte Serge Sabarsky devolveu à família de Grünbaum Retrato de um Rapaz (1910) e Mulher Sentada (1911), duas pinturas de guache, aguarela e lápis em papel.
“O timing é extraordinário”, sublinhou David Fraenkel, juíz no Tribunal Internacional do Comércio nos EUA, e um dos herdeiros a quem as obras foram agora devolvidas. A cerimónia desta quarta-feira calhou coincidir com uma importante época de feriados religiosos judaicos, que compreendem o período de dez dias seguintes ao Rosh Hashanah, o novo ano judaico (celebrado este ano a 15 de setembro). “A vossa recuperação [das pinturas] relembra-nos, uma vez mais, que o maior genocídio em massa da história há muito que tem encoberto o maior roubo em massa da história“, disse, dirigindo-se à equipa responsável pela investigação”.
As obras do pintor expressionista austríaco agora recuperadas têm um valor estimado entre os 780 mil euros e os 2.6 milhões. Pelo menos seis pinturas deverão ser leiloadas em Nova Iorque pela Christie’s ainda este ano. De acordo com Timothy Reif, a verba obtida será usada para criar a Fundação Grünbaum Fischer, bem como para a criação de uma bolsa de estudo com o nome de Fritz Grünbaum e destinada a jovens músicos.
A viagem das pinturas de Schiele, dos cabarets de Viena aos museus de Nova Iorque
Foi nos cabarets e teatros de revista de Berlim e de Viena que Grünbaum se notabilizou. Criado no seio de uma família colecionadora de arte, o músico e comediante austríaco acumulou ao longo da vida uma impressionante coleção de obras de arte, sobretudo do movimento modernista das primeiras décadas XX. Entre as quase 450 pinturas em sua posse, cerca de 80 eram da autoria de Schiele, um dos protegidos de um dos maiores nomes da pintura austríaca, Gustav Klimt. Abertamente crítico de Hitler, visava frequentemente os nazis nos seus espetáculos cómicos. Não tardou até que se tornasse alvo das autoridades alemãs nos anos que antecederam o estalar da Segunda Guerra Mundial. Detido em 1938, foi enviado para Dachau, o mais antigo dos campos de concentração nazis.
Foi naquele campo de concentração que terá sido forçado a abrir mão da sua coleção de arte. O processo envolveu a assinatura de documentos, segundo os quais Grünbaum dava procuração à sua mulher, Elisabeth, sobre todos os seus bens, sendo esta depois coagida a entregar a coleção de arte do marido, incluindo os mais de 80 Schieles, ao regime nazi. Grünbaum acabou por morrer em Dachau; a mulher também foi enviada para um campo de concentração, sendo morta em 1942.
As obras ficaram num armazém e foram depois vendidas no estrangeiro para financiar as atividades do Partido Nazi, que considerava Schieler e as suas pinturas “arte judia degenerada”. Durante vários anos, as pinturas foram dadas como perdidas, até que, na década de 1950, reemergiram no mercado como parte da coleção privada de um negociante suíço, Eberhard Kornfeld. Ao longo dos anos, viriam a dispersar-se, passando pela mão de vários colecionadores, incluindo o nova-iorquino Otto Kalir, dono de uma galeria na cidade.
A questão em torno de quem são os legítimos proprietários das obras de Schiele arrasta-se há já várias décadas. De um lado, os descendentes de Fritz Grünbaum, que pretendem reaver a totalidade das obras; do outro, museus e colecionadores privados um pouco por todo o mundo, que contestam ter direito legítimo às pinturas do artista austríaco. O tema chegou a gerar, inclusive, um incidente diplomático. Em 1998, uma das pinturas da coleção original foi cedida pelo Museu Leopoldo, em Viana, ao Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. No entanto, quando os herdeiros austríacos pediram a abertura de um inquérito, tendo em vista a devolução das obras, o então-procurador distrital de Manhattan, Robert Morgenthau, interpôs uma providência cautelar para impedir a sua saída dos Estados Unidos. A ação judicial não foi bem sucedida, e pintura (bem como um outro Schiele reclamado por uma outra família), acabaram por ser devolvidos.
Mais recentemente, a família de Grünbaum tentou reaver um conjunto de obras em posse dos museus Albertina e Leopoldo. A decisão da justiça austríaca não foi favorável: por duas vezes, em 2010 e 2015, uma comissão do governo rejeitou o requerimento da família por entender que o proprietário original não foi destituído das obras pelos nazis, mas que as vendeu legalmente, citando os documentos de procuração assinados na década de 1930.
Nem todos os especialistas partilham esta visão. “Temos uma doutrina nos EUA: não se podem receber títulos de posse de ladrões”, disse à rádio NPR a advogada Jennifer Crater, especialista em casos envolvendo arte roubada, que lembrou que a lei norte-americana não considera legítimas as transações de obras de arte expropriadas pelos nazis.
O veredito desta quarta-feira em Nova Iorque não deverá ter impacto nas decisões da justiça na Áustria ou noutras jurisdições, mas é um passo importante para casos futuros de restituições de obras retiradas aos seus donos durante o Holocausto. O processo promete não ficar por aqui: só na semana passada, as autoridades apreenderam mais três obras de arte ligadas a Grünbaum e que se encontravam em Chicago, Pittsburgh e no Ohio. Os dirigentes do museu de Chicago já vieram publicamente contestar a decisão, dizendo estar “convencidos” de que as obras de arte são legalmente suas. O veredito da justiça de Nova Iorque promete por isso ser apenas mais um episódio num processo que continua a gerar atenção e está longe de estar terminado.
Três obras suspeitas de terem sido roubadas por nazis apreendidas de museus nos Estados Unidos