Zuckerman Unbound foi publicado pela primeira vez em 1981, no original, e chega-nos agora a Portugal pela mão da D. Quixote, cinco anos após a morte do autor. Mais uma vez, Roth (1933-2018) meteu no epicentro da narrativa Nathan Zuckerman, personagem que já quase equivale ao nome do autor, muito por causa, deve dizer-se, do jogo meta-literário, de pura manipulação, que o autor resolveu fazer.

Logo à cabeça do romance, vemos a forma como o autor trata a ambiguidade Roth-Zuckerman. Aqui, inclui elementos intra-literários que lhe permitem fazer esse jogo de espelhos, ironizar com a confusão entre autor e criação – confirmando ou desmentindo, tanto faz. É que, no livro, Zuckerman passeia por Nova Iorque, agora escritor consagrado, nas bocas do mundo, sob as luzes da ribalta. O seu romance Carnovsky rompeu-lhe o anonimato: primeiro, porque a obra teve muitos leitores, tornando o seu nome e a sua cara conhecidos; depois, porque os leitores fizeram equivaler voz autoral a narrador. A personagem Gilbert Carnovsky passa a estar-lhe colada, apesar de Zuckerman olhar para aquilo como uma ficção satírica de si mesmo. Os leitores, ainda assim, procuram um pacto com a verdade, buscam no romance um intuito confessional e perguntam-lhe se fez tudo o que diz ter feito no livro. Isto, claro, já tinha acontecido com o próprio Philip Roth e o seu Portnoy. Há um excerto que mostra esta equivalência de romance a auto-biografia de forma particularmente incisiva e magnificamente irónica:

– Não contou a sua vida toda no livro – disse com tristeza. – Na vida há muito mais coisas. Mas você deixa-as de fora. Para se vingar.
(…)
– Ouça lá, você faz aquilo tudo que vem no livro? Com aquelas garinas todas? Você é um caso sério, homem.” (p. 18)

Enquanto deambula pela cidade, Zuckerman vai estranhando a nova realidade. A pressão da fama cria um novo jogo de convivência social, uma vez que a visibilidade pública muda a expectativa alheia. De repente, quem o vê tem uma imagem, o que implica que espere mais – ou pelo menos qualquer coisa – de si. Com isto, chegam os admiradores persistentes, encantados por vê-lo, que pouco mais lhe dão do que vontade de fugir. Bastam uns passos por Nova Iorque para o leitor estar lá também: a prosa é escorreita, o tom é explicativo, não há entraves na sintaxe, e as descrições bastam para que se pinte o ambiente à volta. À medida que a narrativa se desenrola, também vamos vendo, como pano de fundo, a década de 60 dos Estados Unidos. Nunca aparece como coisa evidenciada, metida a pontapé, antes como parte integrante da narrativa: está lá e marca o passo.

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Título: “Zuckerman libertado”
Autor: Philip Roth
Editora: D. Quixote

Tradução: Francisco Agarez
Páginas: 240

Há uma certa ironia na forma como Roth trata o que habitualmente é visto como sucesso. Chegam as vendas, o dinheiro e o reconhecimento público de Zuckerman e, com isso, parecem chegar todas as maleitas. Isto não acontece num sentido trágico, num jogo de azar permanente, antes num desfasamento permanente entre a cabeça de um quase eremita e uma vida de exposição. Esta rompe-lhe as relações e põe travões no dia-a-dia, uma vez que a expectativa alheia se transformar num elemento a ser gerido por Zuckerman.

O jogo meta-literário é de particular interesse: à medida que vemos Roth em Zuckerman, também vemos Portnoy em Carnovsky. Por vezes, o leitor mais ingénuo pode julgar que lê simplesmente uma auto-ficção de nomes trocados, mas convém que nunca se deixe que o autor faça o seu jogo sem esperar luta de volta. O romance também aborda a questão auto-referencial das personagens do romance do romance (Carnovsky), com a crítica a identificar as fontes que deram de beber à prosa, e com isto vem a teorização sobre a responsabilidade do autor – Zuckerman – sobre o povo judeu, já que nomear ou sugerir ou deixar desvendar traz implicações.

Tem graça, a forma com o Zuckerman vai partindo do seu contexto para ludibriar, incluindo a receção de livros anteriores na realização de livros posteriores. Com isto, o romance também aborda as acusações feitas à publicação do seu O complexo de Portnoy, dando-lhes uma resposta no âmbito ficcional – sem que isso implique, por isso, um pacto com a verdade; sem que isso se possa fazer equivaler a uma declaração em tribunal. Mas, por pejado que o romance estivesse de ironia, também este Zuckerman libertado foi visto não só com confissão, mas também como confirmação. A relação dialógica entre leitores-obra, ao extrapolar os códigos da literatura, acabava, assim, por transformar a recepção numa entidade orgânica viva que já estava imbuída da ironia do autor. Mesmo isto é tratado no campo da ficção:

Que as pessoas tinham tomado uma caricatura por uma confissão e estavam a interpretar uma personagem que viva num livro. Zuckerman tentava interpretar aquilo como um elogio – tinha feito com que pessoais reais acreditassem que Carnovsky também eral real – mas acabava por fingir que ele era apenas ele, e afastava-se com passos curtos e rápidos.” (p. 19)

Sendo difícil evitar-se o paralelismo aquando da leitura, também deverá ter-se em conta que o autor sabia que o paralelismo seria evidente, e que o próprio ato de escrever já passa por saber manipular. Assim, fazer tábua rasa dessa possibilidade, passando a ver-se o terreno literário como mero terreno confessional, poderá resultar num encaminhamento da recepção, num condicionamento bem conseguido da interpretação. E, nisso, sabe-se que Roth era mestre. Zuckerman libertado não terá o alcance de outros romances do autor, tais como A mancha humana ou Pastoral Americana, nem terá o mesmo tom vicioso e viciante de O complexo de Portnoy, mas é uma narrativa compacta, bem conseguida, escorreita, atravessada por uma ironia permanente e por laivos de humor que marcam a leitura.

A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.