Era uma “especialista em extensão de pestanas” com 29 anos. Tinha nacionalidade búlgara e era dona de um pequeno centro de estética chamado Pretty Woman em Acton, na periferia de Londres. Em frente, havia um restaurante português de nome Villamoura. Ao jornal Telegraph, o dono Tiago Nogueira disse que a jovem esteticista chamada Vanya Gaberova era “muito tímida” e tinha um namorado. “Conhecia-a há dois ou três anos e nunca esperava que isto fosse acontecer.”

Foi com surpresa que Tiago Nogueira recebeu a notícia que afinal a esteticista búlgara era uma espia que trabalhava para os serviços secretos russos. “Nunca teria suspeitado que ela seria uma espia. Mas se fosse, seria uma muito boa”, afirmou o dono do restaurante. Certo é que os serviços de procuradoria da coroa britânica acusaram Vanya Gaberova de “conspirar para recolher informações úteis para o inimigo com um propósito prejudicial para a segurança e interesses do Estado”.

Não foi só a aparente inocente esteticista que apanhada pelas autoridades. Foram detidas mais quatro pessoas, todas elas com nacionalidade búlgara. Um deles, Orlin Roussev, de 45 anos, era dono de um alojamento local em Norfolk; quem também integrava esta rede de espionagem era o casal composto por Bizer Dzhambazov, que conduzia ambulâncias, e Katrin Ivanova, que trabalhava num laboratório de análises clínicas. Com um perfil mais discreto, mas também atrás das grades, está Ivan Stoyanov, de 31 anos.

Todos estes cinco cidadãos de nacionalidade búlgara viviam em zonas distintas na periferia de Londres. Ainda que alguns morem no Reino Unido há mais de uma década, os serviços de procuradoria da coroa britânica especificaram que as ações de espionagem começaram a partir de 30 de agosto de 2020 e duraram até 8 de fevereiro de 2023. Os cinco elementos da rede moravam em sítios distintos, mas todos parecem estar ligados a um enigmático apartamento com uma localização precisa: a cerca a dois quilómetros da base da força aérea britânica de Northolt.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Nem uma semana depois de terem sido detidos, os cinco membros da rede de espionagem russa foram presentes à juíza Kathryn Selby na quarta-feira. Houve, no entanto, uma novidade que veio aumentar a complexidade do caso. “As informações que chegavam ao Reino Unido e aquelas que eram enviadas para o Reino Unido eram transmitidas por uma pessoa chamada Jan Marsalek.”

Nascido na Áustria, Jan Marsalek é um dos fugitivos mais procuradores em todo o mundo e esteve no centro de um dos maiores escândalos financeiros na Alemanha. Sabia-se que, após ter rebentado a polémica, o austríaco tinha fugido para a Bielorrússia e depois para a Rússia. Mas esta é a primeira vez que se associa o nome do homem, hoje com 43 anos, a uma operação dos serviços secretos de Moscovo. 

Para entender a magnitude do escândalo, há que recuar até ao final da década de 90, numa altura em que se assistia à democratização da internet e também ao surgimento dos pagamentos online. Com sede em Munique, a Wirecard foi criada precisamente para explorar o que na altura ainda era um nicho. Com apenas 20 anos, Jan Marsalek foi contratado para a start up.

Ao longo dos anos e chefiada pelo austríaco Markus Braun, a empresa foi crescendo e ganhando cada vez mais espaço no mercado alemão. Como nota o jornal Telegraph, a Wirecard conseguiu expandir-se principalmente na área das apostas online, uma zona cinzenta no que diz respeito à fiscalização das autoridades alemãs. Também Jan Marsalek foi sendo promovido: aos 29 anos, converteu-se em diretor de operações.

Para crescer, a Wirecard foi comprando empresas mais pequenas e diversificando as suas fontes de rendimento, solidificando a sua posição no mercado. Em 2018, já valia 30 mil milhões de euros e empregava cerca de cinco mil funcionários. À medida que se ia tornando cada vez maior, os lucros da empresa também começavam a ser investigados, principalmente pelo Financial Times, que, a 30 de janeiro de 2019, divulgou uma grande investigação que dava conta de “fraudes, falsificações e ligações comerciais obscuras”.

Os reguladores alemães reagiram e proibiram a venda de ações da Wirecard, mas a procuradoria alemã duvidava da investigação da Financial Times — e até ponderou processar o jornal. Certo é que a empresa acabou por falir em 2020, levou à abertura de um inquérito criminal em nome de Jan Marsalek e motivou a fuga do empresário para a Bielorrússia (e depois eventualmente para a Rússia).

Ao longo dos anos, Jan Marsalek, que foi obtendo um protagonismo cada vez maior na empresa, manteve sempre uma ligação próxima com a Rússia. Por exemplo, o escritório em Munique do empresário estava decorado com chapéus tipicamente russos e matrioskas — as típicas bonecas russas —, comprando ainda uma mansão perto do consulado russo na cidade da Baviera. Na casa, costumavam realizar-se festas com espiões russos, para além de o homem ser abertamente membro da “grupo de amizade” entre a Áustria e a Rússia.

As ligações à Rússia não são, por isso, uma surpresa do empresário que é procurado pela Europol e Interpol. Novidade é o facto de colaborar com os serviços secretos russos, desta vez com cinco búlgaros que pareciam ter uma vida normal — mas que estavam longe disso.