910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

"A Bela América". Uma fábula social e um realizador convicto: "Falta realidade ao cinema português"

Este artigo tem mais de 1 ano

Um homem em crise, a mãe dele e uma mulher-fantasia, no regresso de António Ferreira às longas, à procura da "caricatura como arma política" e de um cinema que tenta "falar para toda a gente".

Estêvão Antunes, Custódia Gallego e São José Correia: os protagonistas de "A Bela América"
i

Estêvão Antunes, Custódia Gallego e São José Correia: os protagonistas de "A Bela América"

Estêvão Antunes, Custódia Gallego e São José Correia: os protagonistas de "A Bela América"

Lucas (Estêvão Antunes) tem muito pouca sorte. É despejado da casa com a mãe (Custódia Gallego), cega e fã de perucas a fazer lembrar os tempos em que era atriz. Muito bom cozinheiro, usa flor-de-lis e peixe do rio como ninguém, melhor do que o pai (Carlos Areia), chefe num cruzeiro sem volta à vista. É atirado para uma barraca, onde tenta sobreviver, vendendo as suas comidas num serviço de take away chamado “Papaléguas”. Noémia (Daniela Gago), a sua namorada ou, pelo menos, a mulher que não o larga, aspirante a jornalista, quer que Lucas siga o seu talento, mas o protagonista de A Bela América sente que não pode deixar a mãe sozinha. Eis que surge essa América (São José Correia), candidata a Presidente da República, com campanha e logótipos conhecidos de eleições dos Estados Unidos da América, símbolo de esperança por quem Lucas fica obcecado.

O filme, que marca o regresso às longas-metragens de António Ferreira — o último tinha sido “Pedro e Inês”, o mais visto de 2018 em Portugal — é uma fábula desconcertante por várias razões, dividida em duas narrativas, que ora se aproxima de uma típica comédia portuguesa, onde os clichés e as caricaturas dominam, ora sai dessa rota, para falar mais a sério sobre desigualdades sociais a partir da obsessão que Lucas ganha por América.

No fundo, parece perder-se mais na atualidade dos dias, no querer dizer algo de relevante pintado de sátira social, do que no achado que é Lucas, retrato convincente de um homem talentoso, sem futuro, perversamente apegado ao sonho americano. O realizador defende-se de críticas e provocações sobre sua mais recente obra, guardada na gaveta há 20 anos, que, segundo defende, está longe dos filmes portugueses. “Esses estão na estratosfera, mais preocupados com a arte, com a linguagem cinematográfica. É aborrecido. Não gosto de filmes que falam de filmes. Falta realidade ao cinema português”, garante.

[trailer oficial do filme “A Bela América”:]

A obsessão de Lucas por América, que visita a sua casa para se “aproveitar dos coitadinhos, como fazem os políticos”, com o objetivo de angariar mais votos, cresce à medida que a campanha se desenrola. O protagonista preocupa-se com a mãe todo o santo dia, uma exagerada (na representação) progenitora que adora os seus cozinhados mas prende-o àquelas decrépitas quatro paredes. Mal é chamado para estar presente na sede da candidatura, ganha uma nova vida. Antes, na primeira visita, já a candidata, enfiada num plano televisivo em movimento — António Ferreira optou por realizar de câmara em pé — tinha ficado deliciada com um bombom feito por Lucas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É aí que o protagonista começa a cozinhar refeições de alto gabarito, quase todas as noites, na casa de América, onde mora sozinha e sem qualquer tipo de segurança. A candidata gosta do mistério, Lucas convence-se de que, afinal, a sua vida pode ter uma saída ao lado de uma mulher de sucesso. É nesse plano, entre o real e o absurdo, onde o filme pode ficar, muitas vezes, a meio caminho, que António Ferreira quer colocar o espectador. “O filme tem esse lado de fábula, tudo é real com toques de fantasia. Somos observadores, andamos sempre atrás dos atores porque não trabalho com planificação, não sei como vou filmar. Quero contar histórias, em Portugal parece que o estilo substitui a narrativa”, argumenta o realizador.

O realizador Antóno Ferreira durante a rodagem de "A Bela América"

Há muito tempo que António Ferreira largou a planificação, “que não vale nada”. Trabalha com os atores que tem em cena e só aí é que decide o que vai fazer. Foi assim que escreveu o final de A Bela América, decidido com São José Correia e Estêvão Antunes, “inventado poucos dias antes de ser filmado”. O que não largou foi a vontade de falar daquilo que lhe apetece. Se em Debaixo de Água, o seu primeiríssimo trabalho que chamou à atenção do festival de Cannes há 23 anos (e que em Portugal colheu críticas positivas), andou preocupado com paixões de adolescentes, em A Bela América resolveu colocar em primeiro plano a crise de habitação, sob o manto de influência que os norte-americanos têm no mundo ocidental.

Ainda assim, as suas preocupações, garante, “são exatamente as mesmas”. Ao realizador não lhe interessa o estilo, mas parece seguir a vontade de um determinado cinema de autor, do qual é crítico, ao retratar um país pobre, sem esperança, amarrado ao seu passado. António Ferreira nega que esta seja uma típica “comédia labrega”. E nega que queira ser “panfletário”. Apesar das suas alfinetadas, nega o binómio cinema de autor / cinema comercial: “Há os que vendem bilhetes e os que não vendem, ponto final sem parágrafo. É um facto que a polícia, neste país, entra em casa das pessoas para as expulsar. Estou a mostrar essa realidade. Tentámos bater em todos. Mostramos os políticos, os jornalistas que só querem fazer manchetes gordas. O cinema português ou tem comédias labregas ou um pseudo-intelectualismo que as pessoas não vão ver. No meu caso, tento falar para toda a gente.”

"É através dos estereótipos que levamos as pessoas a identificar aquilo de que estamos a falar", conta o realizador

O realizador também não concorda com a descrição das suas personagens como “estereotipadas”. Nem a América, populista candidata a fazer lembrar quase todos os populistas dos nossos dias. Nem o amigo de Lucas, Vitor (João Castro Gomes), trapaceiro e bon vivant, nem a mãe do protagonista, que é cega mas não deixa de ser mãe, ainda que seja retratada como uma peça de mobília que ficou no sótão — é difícil perceber o que acrescenta na história, sem ser para mostrar a “prisão” em que Lucas vive. “Não acho que a mãe dele seja uma representação exagerada, conheço pessoas assim. De mães que usam chantagem emocional para dominar os filhos. E, mais uma vez, isto não é bem a realidade. Se é caricatural? Talvez seja um pouco, mas a caricatura é uma arma política imensa. É através dos estereótipos que levamos as pessoas a identificar aquilo de que estamos a falar”, conta o realizador.

António Ferreira não é de Lisboa. Vive entre Portugal e o Brasil, porque a sua produtora, Persona Non Grata, também está plantada do outro lado do Atlântico. A Bela América foi todo rodado em Coimbra, a sua terra. Esta longa-metragem surge depois de quatro anos de um Bolsonarismo “que aniquilou tudo o que eram recursos financeiros”. Já não faz curtas-metragens nem documentários. Foram-se metendo projetos pelo meio e outras tantas negas de acesso aos apoios públicos do Instituto do Cinema e Audiovisual.

Foi graças ao sucesso de bilheteira de Pedro e Inês, através do apoio automático do ICA, que conseguiu voltar a este A Bela América. O seu trajeto induz-nos a pensar que passou de um cinema independente para um cinema comercial. Nega essa transição: garante estar igual. “Não faço filmes para críticos ou para festivais. Com o Respirar Debaixo de Água tive sorte de principiante. Foi um filme da terra, mandei um VHS manhoso para a seleção de Cannes, mal sabia como funcionava. Foi selecionado. Falo do que quero. Os meus filmes são para quem paga bilhetes”, finaliza.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.