Lucas (Estêvão Antunes) tem muito pouca sorte. É despejado da casa com a mãe (Custódia Gallego), cega e fã de perucas a fazer lembrar os tempos em que era atriz. Muito bom cozinheiro, usa flor-de-lis e peixe do rio como ninguém, melhor do que o pai (Carlos Areia), chefe num cruzeiro sem volta à vista. É atirado para uma barraca, onde tenta sobreviver, vendendo as suas comidas num serviço de take away chamado “Papaléguas”. Noémia (Daniela Gago), a sua namorada ou, pelo menos, a mulher que não o larga, aspirante a jornalista, quer que Lucas siga o seu talento, mas o protagonista de A Bela América sente que não pode deixar a mãe sozinha. Eis que surge essa América (São José Correia), candidata a Presidente da República, com campanha e logótipos conhecidos de eleições dos Estados Unidos da América, símbolo de esperança por quem Lucas fica obcecado.
O filme, que marca o regresso às longas-metragens de António Ferreira — o último tinha sido “Pedro e Inês”, o mais visto de 2018 em Portugal — é uma fábula desconcertante por várias razões, dividida em duas narrativas, que ora se aproxima de uma típica comédia portuguesa, onde os clichés e as caricaturas dominam, ora sai dessa rota, para falar mais a sério sobre desigualdades sociais a partir da obsessão que Lucas ganha por América.
No fundo, parece perder-se mais na atualidade dos dias, no querer dizer algo de relevante pintado de sátira social, do que no achado que é Lucas, retrato convincente de um homem talentoso, sem futuro, perversamente apegado ao sonho americano. O realizador defende-se de críticas e provocações sobre sua mais recente obra, guardada na gaveta há 20 anos, que, segundo defende, está longe dos filmes portugueses. “Esses estão na estratosfera, mais preocupados com a arte, com a linguagem cinematográfica. É aborrecido. Não gosto de filmes que falam de filmes. Falta realidade ao cinema português”, garante.
[trailer oficial do filme “A Bela América”:]
A obsessão de Lucas por América, que visita a sua casa para se “aproveitar dos coitadinhos, como fazem os políticos”, com o objetivo de angariar mais votos, cresce à medida que a campanha se desenrola. O protagonista preocupa-se com a mãe todo o santo dia, uma exagerada (na representação) progenitora que adora os seus cozinhados mas prende-o àquelas decrépitas quatro paredes. Mal é chamado para estar presente na sede da candidatura, ganha uma nova vida. Antes, na primeira visita, já a candidata, enfiada num plano televisivo em movimento — António Ferreira optou por realizar de câmara em pé — tinha ficado deliciada com um bombom feito por Lucas.
É aí que o protagonista começa a cozinhar refeições de alto gabarito, quase todas as noites, na casa de América, onde mora sozinha e sem qualquer tipo de segurança. A candidata gosta do mistério, Lucas convence-se de que, afinal, a sua vida pode ter uma saída ao lado de uma mulher de sucesso. É nesse plano, entre o real e o absurdo, onde o filme pode ficar, muitas vezes, a meio caminho, que António Ferreira quer colocar o espectador. “O filme tem esse lado de fábula, tudo é real com toques de fantasia. Somos observadores, andamos sempre atrás dos atores porque não trabalho com planificação, não sei como vou filmar. Quero contar histórias, em Portugal parece que o estilo substitui a narrativa”, argumenta o realizador.
Há muito tempo que António Ferreira largou a planificação, “que não vale nada”. Trabalha com os atores que tem em cena e só aí é que decide o que vai fazer. Foi assim que escreveu o final de A Bela América, decidido com São José Correia e Estêvão Antunes, “inventado poucos dias antes de ser filmado”. O que não largou foi a vontade de falar daquilo que lhe apetece. Se em Debaixo de Água, o seu primeiríssimo trabalho que chamou à atenção do festival de Cannes há 23 anos (e que em Portugal colheu críticas positivas), andou preocupado com paixões de adolescentes, em A Bela América resolveu colocar em primeiro plano a crise de habitação, sob o manto de influência que os norte-americanos têm no mundo ocidental.
Ainda assim, as suas preocupações, garante, “são exatamente as mesmas”. Ao realizador não lhe interessa o estilo, mas parece seguir a vontade de um determinado cinema de autor, do qual é crítico, ao retratar um país pobre, sem esperança, amarrado ao seu passado. António Ferreira nega que esta seja uma típica “comédia labrega”. E nega que queira ser “panfletário”. Apesar das suas alfinetadas, nega o binómio cinema de autor / cinema comercial: “Há os que vendem bilhetes e os que não vendem, ponto final sem parágrafo. É um facto que a polícia, neste país, entra em casa das pessoas para as expulsar. Estou a mostrar essa realidade. Tentámos bater em todos. Mostramos os políticos, os jornalistas que só querem fazer manchetes gordas. O cinema português ou tem comédias labregas ou um pseudo-intelectualismo que as pessoas não vão ver. No meu caso, tento falar para toda a gente.”
O realizador também não concorda com a descrição das suas personagens como “estereotipadas”. Nem a América, populista candidata a fazer lembrar quase todos os populistas dos nossos dias. Nem o amigo de Lucas, Vitor (João Castro Gomes), trapaceiro e bon vivant, nem a mãe do protagonista, que é cega mas não deixa de ser mãe, ainda que seja retratada como uma peça de mobília que ficou no sótão — é difícil perceber o que acrescenta na história, sem ser para mostrar a “prisão” em que Lucas vive. “Não acho que a mãe dele seja uma representação exagerada, conheço pessoas assim. De mães que usam chantagem emocional para dominar os filhos. E, mais uma vez, isto não é bem a realidade. Se é caricatural? Talvez seja um pouco, mas a caricatura é uma arma política imensa. É através dos estereótipos que levamos as pessoas a identificar aquilo de que estamos a falar”, conta o realizador.
António Ferreira não é de Lisboa. Vive entre Portugal e o Brasil, porque a sua produtora, Persona Non Grata, também está plantada do outro lado do Atlântico. A Bela América foi todo rodado em Coimbra, a sua terra. Esta longa-metragem surge depois de quatro anos de um Bolsonarismo “que aniquilou tudo o que eram recursos financeiros”. Já não faz curtas-metragens nem documentários. Foram-se metendo projetos pelo meio e outras tantas negas de acesso aos apoios públicos do Instituto do Cinema e Audiovisual.
Foi graças ao sucesso de bilheteira de Pedro e Inês, através do apoio automático do ICA, que conseguiu voltar a este A Bela América. O seu trajeto induz-nos a pensar que passou de um cinema independente para um cinema comercial. Nega essa transição: garante estar igual. “Não faço filmes para críticos ou para festivais. Com o Respirar Debaixo de Água tive sorte de principiante. Foi um filme da terra, mandei um VHS manhoso para a seleção de Cannes, mal sabia como funcionava. Foi selecionado. Falo do que quero. Os meus filmes são para quem paga bilhetes”, finaliza.