Fundador do conceito pronto-a-vestir, considerado “designer futurista” e visto como um dos grandes nomes da alta-costura europeia. Pierre Cardin sabia bem a reputação que o seguia e fazia questão de o mostrar, apesar de dizer que “todo o mundo o conhecia”. Já a quem deixaria esse legado decidiu desde cedo que não seria preocupação sua: “Depois da minha morte? Não penso muito nisso. Não organizei nada. Mesmo nada”, disse, numa entrevista à Paris Match, citado pelo The New York Times, três meses antes da sua morte, em dezembro de 2020, aos 98 anos.
Aliás, o célebre criador francês, que nunca teve filhos e não tinha mulher, chegou a ser pressionado pela família para lidar com o assunto, mas, cada vez que ouvia a frase ‘Vamos ao notário’, arranjava uma desculpa de última hora. “Ele não conseguia imaginar alguém a substituí-lo”, explicou Louis Cardin-Edwars, sobrinho-neto de Pierre Cardin, que chegou a trabalhar 20 anos com ele.
Tal indiferença com a herança levou a que não houvesse apenas um substituto, mas sim 22 a lutar por ela. De um lado, está um sobrinho-neto que acredita que uma folha de papel escrita à mão é o suficiente para mostrar que é o legítimo herdeiro. Do outro, estão os outros 21, que o acusam de violência contra idosos e de falsificação de documentos. A verdade é que, quase três anos depois da sua morte, os 800 milhões de euros em que a empresa que fundou em 1950 está avaliada continuam sem dono.
Tudo começou com Rodrigo Basilicati-Cardin, o sobrinho-neto de 52 anos que assumiu o controlo da empresa Pierre Cardin Evolution, como diretor-geral, e a direção artística da marca Pierre Cardin, pouco antes da morte do seu fundador, que nasceu em 1922.
Nascido e criado em Pádua, Itália, e formado em engenharia civil, conhece o tio aos 25 anos, numa exposição de arte em Veneza. “Ele disse-me: ‘Fala-me de ti’ e a isso seguiram-se duas horas de conversa”, que terminaram com um convite para morar consigo no seu “palácio”.
Pierre Cardin, que fugiu com os pais de Itália para França, durante a ditadura de Benito Mussolini, decidiu integrar Basilicati, como se chamava na altura, na sua empresa, com a função de supervisionar a fonte que fornecia água mineral ao restaurante Maxim’s. A pouco e pouco, este foi subindo, e acabou por ser nomeado diretor-geral administrativo em 2018, ano em que colocou Cardin no nome.
Rodrigo Basilicati-Cardin em frente ao restaurante Maxim’s
Isso dava-lhe uma grande importância na empresa, mas não “o direito de assinar o contrato ou de vender qualquer coisa”, garantiu Jean-Louis Riviére, advogado de quatro sobrinhas-netas de Pierre Cardin, ao mesmo jornal norte-americano.
Já no final de 2020, altura em que o tio foi infetado com Covid-19 e ficou gravemente doente, Basilicati recebeu uma procuração que lhe dava controlo da empresa. Algo “suspeito” para o advogado, pois “Cardin estava em coma”, na altura, algo que o sobrinho-neto nega.
Apesar de garantir que o documento foi assinado na presença de um notário e de dois médicos que disseram que ele estava lúcido, as sobrinhas-netas não acreditam. E tal resultou numa queixa de violência contra idosos, fraude, falsificação de documentos e quebra de confiança.
Patricia, Laurence, Régine e Marie-Christine são quatro dos 21 primos — Pierre Cardin era o mais novo de 13 irmãos — que disputam a herança do estilista e que pretendem vender a empresa e ficar com o seu dinheiro.
A quatro irmãs não acreditam na versão de Basilicati-Cardin, que se apoia num testamento escrito à mão a 10 de novembro de 2016, com a assinatura ‘PC’, que terá descoberto no ano passado no seu apartamento, para reivindicar a totalidade da herança.
As sobrinhas-netas alegam que, como este não foi encontrado juntamente com os outros bens do estilista e não foi assinado com a supervisão do notário, não pode ser válido. E, em março, um juiz deu-lhes razão, decisão de que o primo recorreu.
“Depois da morte de Pierre Cardin, houve algumas dúvidas sobre porque é que se tinha demorado um ano e meio a encontrar um testamento. O de 2016 é escrito à mão, assinado com as iniciais PC e diz que sou o único herdeiro. Não há lei que diga como se deve assinar”, reagiu em junho Basilicati, lembra o jornal El Mundo.
A 2 de novembro, os primos voltam a tribunal para disputar a herança, esperando que seja a última vez que lá se sentam. “Há duas formas de resolução. Ou o testamento de Basilicati-Cardin é invalidado e as minhas clientes e os seus primos são legitimados como herdeiros, ou é confirmado e ele fica oficialmente com a empresa”.
Há uma questão fundamental pela qual fui denunciado por manipulação e quebra de confiança, mas confio na justiça e tudo será provado. Os grafólogos consideraram que a escrita era descontraída e clara. O meu tio estava sozinho. Se tivesse sido coagido, não teria sido através dessa forma”, acrescentou o sobrinho-neto.
Apesar de o testamento ser a maior prova de que ele é o único herdeiro, Basilicati-Cardin também sustenta a sua teoria nas declarações do estilista antes da sua morte, em 2019. “O meu tio foi visto no restaurante Maxim’s, a apresentar um jovem chamado Rodrigo, como a pessoa que continuaria o seu trabalho”, revelou, lembrando ainda outra entrevista, de 2003, em que Pierre Cardin o destacou como “a sua continuação”.
Ainda assim, este não é o único testamento que existe. Emmanuel Beffy, que trabalhou com Pierre Cardin, na supervisão dos imóveis e projetos na Ásia, também diz ter um de 2013.
Neste, a descrição dos bens é simples. Beffy fica com a mansão na Normandia, Marie-Christine e Louis Cardin-Edwards — que foi “deselegantemente” afastado da empresa com a ascensão de Basilicati-Cardin — com um apartamento, e tudo o que era móvel (carros, joias, obras de arte e contas bancárias) ficavam com Beffy e Basilicati-Cardin.
Essa poderia ser a chave essencial para atribuir os bens do estilista aos sobrinhos-netos, mas, apesar de ter sido assinado e datado, não foi registado no notário. Por isso, Beffy espera pelo dia 2 de novembro “para ver o que acontece”.
