A Lagoa das Sete Cidades, em São Miguel, nos Açores, é um dos cartões postais da ilha e foi considerada como uma das sete maravilhas naturais de Portugal. Todos os anos, dezenas de milhares de turistas param no miradouro da Vista do Rei ou do Cerrado das Freiras para admirar as vistas da Lagoa Verde e da Lagoa Azul, lá em baixo. A paisagem é deslumbrante e inspira uma certa tranquilidade. Tanta, que é fácil esquecer que aquilo para que se está a olhar é a cratera de um vulcão ativo. O mais ativo do arquipélago, na verdade: terá tido 17 erupções nos últimos cinco mil anos – o que parece muito em tempo humano, mas é pouco em tempo geológico.
Foi aqui que a investigadora Luísa Pereira, lisboeta de gema, de 28 anos, passou os primeiros meses deste ano. Também a ela o cenário dos Açores lhe inspira uma certa paz, que a faz ficar mais dada a caminhadas matinais na natureza, hábito que não tem na capital. Mas nunca se esquece do que se esconde por baixo dos campos verdes e das lagoas de águas tranquilas: enormes sistemas vulcânicos, onde, a cada momento, estão em confronto forças poderosas, quer regionais, quer locais, como a tectónica, o magma, os gases e fluidos que circulam em fraturas e que compõem sistemas hidrotermais.
Quem vive nos Açores e quem visita, esquece-se disso, mas há um perigo vulcânico associado. Apesar das erupções se tornarem progressivamente menos frequentes, este tipo de vulcões [estratovulcões com caldeira], estão entre os mais perigosos do mundo.”
Licenciada em Geologia e com um mestrado em Engenharia Geológica, Luísa Pereira iniciou em Novembro de 2022 o doutoramento em vulcanologia, financiado pela Fundação “la Caixa”, no Instituto de Investigação em Vulcanologia e Avaliação de Riscos (IVAR), na Universidade dos Açores, co-orientado por membros do Instituto Dom Luiz, da Universidade de Lisboa, e do Instituto Nacional de Geofísica e Vulcanologia, de Nápoles, em Itália. A sua área de especialização e interesse é a mecânica das rochas e, no trabalho de doutoramento, é exatamente isso que pretende estudar: as características e comportamento das rochas dos vulcões centrais da ilha de São Miguel.
Para compreender o trabalho de Luísa é útil recordar as ilustrações do planeta Terra que todos vimos nos livros da escola e que a dividem em camadas, desde o quase desconhecido núcleo ou endosfera, com temperaturas que podem atingir os seis mil graus centígrados, até chegar à camada mais superficial da terra, a crosta, que tem espessuras variáveis entre os cinco e os setenta quilómetros, e onde, como explicam os livros escolares, “são desenvolvidas as atividades humanas” – que é como quem diz, onde assentamos os pés e fazemos a nossa vida.
A uma escala regional, os vulcões surgem junto a grandes falhas e fronteiras de placas tectónicas. O magma e os gases do interior da terra têm mais facilidade em ascender à superfície onde encontram estas descontinuidades e os Açores estão num ponto de confluência de três destas gigantes placas, pelo que têm 26 vulcões ativos. A uma escala local, dentro destas regiões vulcânicas, é o comportamento da rocha que determina se ela aguenta ou não a pressão e tensão interna. Ou seja, se a erupção é mais ou menos explosiva ou perigosa).
Luísa passou os primeiros meses do ano a fazer recolha de amostras de rochas junto aos vulcões das Sete Cidades e do Fogo, na ilha de São Miguel e, agora, vai testar as suas propriedades e comportamento em laboratório, executando uma série de testes. “Compreender melhor o comportamento físico e mecânico destas rochas, ainda que a uma escala laboratorial, contribui para a monitorização dos vulcões”, explica a investigadora. Ao perceber as características destas rochas, por exemplo, como e quando é que partem quando são sujeitas a tensões, os cientistas conseguem também perceber melhor como é que os fluidos magmáticos ascendem e circulam através delas. “A ideia é poder usar depois estes dados em modelações que permitam compreender melhor o comportamento dos vulcões”, acrescenta.
E Luísa não se vai limitar a analisar as rochas tal como são. Vai modificá-las em laboratório para mimetizar a influência que o ambiente hidrotermal – que se localiza nos níveis mais superficiais da crosta terrestre junto aos vulcões dos Açores – tem sobre a forma como se comportam. “Há minerais hidrotermais que se podem depositar nos poros das rochas. Mas o tipo de mineral influencia o comportamento da rocha. Uma argila, por exemplo, terá tendência para torna a rocha mais branda, ao passo que um quartzo a torna mais resistente”, explica a estudante de doutoramento.
Por outro lado, o poder dos vulcões não é apenas destruidor. Todo este calor proveniente do interior do planeta também pode ser usado – embora ainda seja pouco – como fonte de energia limpa e renovável: a energia geotérmica. O vulcão Água de Pau, mais conhecido por Fogo, no centro de São Miguel, que Luísa também está a estudar, tem reservatórios hidrotermais com potencial geotérmico, pelo que no seu flanco norte existem duas centrais a funcionar. E Luísa gostaria de usar os seus dados para compreender como podemos usar com mais eficácia estes sistemas hidrotermais na produção de energia.
Depois de carregar, com ajuda, os enormes blocos rochosos para dentro de um jipe, levou-os para o Laboratório Regional de Engenharia Civil dos Açores, onde foram transformados em estruturas mais manuseáveis que serão usadas para fazer os testes: com uma caroteadora, a rocha foi furada até obter centenas de provetes – cilindros de rocha com cerca de um palmo de altura por cinco centímetros de diâmetro – que vão ser usados em laboratório para os testes.
A rapariga das pedras
É agosto, Luísa está em Lisboa, onde vai realizar parte do trabalho e, antes de ir de férias, tem andado dedicada a uma tarefa insólita: “emagrecer provetes”. Acontece que resolveu testar o que acontece às rochas se lhes aplicar não só forças verticais, mas também laterais. Isso foi conseguido através de uma colaboração com o Laboratório de Mineralogia e Petrologia do Instituto Superior Técnico, mas, quando foi à reunião em julho e tentou enfiar os cilindros de rocha no tubo da máquina de testes, ficou lívida: por dois ou três milímetros, não couberam. São demasiados gordos e é por isso que tem de encontrar forma de os emagrecer. “Apesar de isto me preocupar bastante, também acaba por ser caricato: tenho andado a contactar empresas de artes fúnebres, lareiras e estátuas de jardim, ali para os lados da Terrugem e de Pêro Pinheiro, para encontrar alguém que faça este trabalho”, conta a rir.
De resto, tem havido toda uma componente de «trabalhos manuais e artesanais» do projeto com que não contava inicialmente. As 16 pesadíssimas caixas cheias de provetes de rochas foram transportadas de Ponta Delgada para Lisboa, estão agora na cave da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Nas últimas semanas, Luísa tem andado, literalmente, a pôr as mãos na massa ou, neste caso, na pedra: os topos dos provetes estão irregulares pelo que os tem estado a cortar com serras específicas – e aqui explica que as há de dois tipos: “as que cortam mãos” e “as que não cortam mãos” – e a alisá-las com lixa.
É uma tarefa que exige um traje à medida, que a possa proteger do pó e da lama: quando chega à cave para trabalhar, a primeira coisa que faz é equipar-se com um avental, gabardina comprida, outro avental impermeável, um lenço atado à cabeça, protetores de ouvidos, óculos e galochas. “Mesmo assim, saio quase sempre com o cabelo pastoso e com uma espécie de barba de lama.”
Na família está rodeada de engenheiros informáticos que, carinhosamente, lhe chamam “a rapariga das pedras.” E, por estes dias, em que anda a tratar da preparação das rochas e chega a casa coberta de resto de lama, ouve com frequência: “Então, como é estão as pedras, Luísa?”
É um gracejo que não pretende resposta, mas, na verdade, em última análise, também é uma boa simplificação da sua pergunta de investigação. É exatamente isso que Luísa quer saber: como é que são e estão estas rochas. Resultados só os terá daqui a mais de dois anos, depois de todos estes testes aos quilos de rochas recolhidos e da análise dos dados. Expectativas não tem. “O objectivo não é a rocha comportar-se melhor ou pior. É apenas que se comporte de alguma maneira”, diz a rir, “para poder compreender se, num sistema hidrotermal, é mais ou menos resistente e de que forma isso vai contribuir para a circulação dos fluidos e para a subida do magma.”
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. Luísa Pereira, atualmente a desenvolver investigação na Universidade dos Açores, foi uma das selecionadas para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do programa de bolsas de doutoramento INPhINIT. A investigadora recebeu 115 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2023 já encerraram. Os prazos para a edição de 2024 deverão arrancar em breve.