Mais de 200 membros da máfia italiana foram condenados por vários crimes de extorsão e suborno, num dos maiores processos de sempre da justiça italiana contra o mundo do crime organizado.
A sentença, conhecida esta segunda-feira em Lamezia Terme, na região da Calábria, diz respeito às atividades do famoso grupo Ndrangheta, umas das mais proeminentes organizações criminosas do mundo, responsável, entre outras coisas, pela grande maioria do tráfico de cocaína no continente europeu.
A dimensão do processo explica-se através dos números: mais de 350 arguidos, 400 advogados e 900 testemunhas foram ouvidas ao longo de quase três anos de julgamento, já de si resultado de uma investigação que começou em 2016 e levou à detenção, em 2019, de centenas de suspeitos, numa operação que envolveu cerca de 2.500 investigadores e agentes da autoridade e se estendeu por 11 regiões de Itália.
A dimensão do caso foi tal que necessitou a construção de um edifício específico para acolher as centenas de envolvidos nas audições judiciais. Na decisão final, acabaram por ser absolvidos mais de 100 arguidos, o que, em todo o caso, representa um golpe severo para as operações da Ndrangheta, que vê agora mais de duas centenas dos seus membros serem encarcerados.
“É uma sentença muito significativa, estamos muito satisfeitos”, disse esta segunda-feira Nicola Gratteri, procurador responsável pelo caso que, já este ano, foi nomeado procurador geral de Nápoles. “Finalmente, comprovámos a existência de uma rede de trabalhadores de colarinho-branco, empresários e políticos que faziam negócios com os clãs de Calábria”, referiu, citado pelo The Guardian.
Além de membros do clã mafioso propriamente dito, foram ainda detidos e condenados vários elementos ligados à justiça, à política e ao mundo dos negócios. Entre estes está Giancarlo Pittelli, advogado e antigo deputado parlamentar do Forza Italia, o partido político de Silvio Berlusconi, que terá de cumprir uma pena de 11 anos de prisão.
Um nome que não constou da lista de condenados foi o de Luigi Mancuso, o principal chefe da Ndrangheta, conhecido nas fileiras do clã como “O Supremo”. Mancuso esteve envolvido na acusação original, mas o seu processo foi separado do dos restantes arguidos, num julgamento paralelo que ainda vai decorrer.
À falta do líder criminoso, a chave do julgamento foi a chave de Emanuele Mancuso, sobrinho de Luigi Mancuso que chegou a um acordo de delação premiada com as autoridades, revelando os detalhes das operações da organização em troca de proteção policial.
Ao longo do julgamento, os procuradores apresentaram um extenso rol de provas, que incluíram mais de 24 mil escutas e conversas entre os suspeitos. Estas evidências permitiram demonstrar o uso de táticas violentas e de intimidação por parte do sindicato criminoso para controlar a comunidade local. As atividades incluíram agressões violentas, ameaças, extorsão, subornos, corrupção, armazenamento de armas e até interferência em eleições locais.
A organização foi ainda responsável por assassinatos, desaparecimentos, agressões e atos de vandalismo contra aqueles que se lhe opusessem. Ao longo do julgamento, informadores revelaram ainda detalhes sobre os extremos a que o grupo chegava para levar a cabo as suas operações, com exemplos como o transporte de cocaína em ambulâncias, a ocultação de armas em cemitérios ou o desvio da rede de abastecimento de águas para o cultivo de marijuana.
O crescimento da organização criminosa nas últimas décadas tornou-a num dos principais grupos de crime organizado do mundo. Para se ter uma ideia, se no passado, a Ndrangheta era ostracizada e vista como menor por outros sindicatos famosos, como a Cosa Nostra siciliana ou a Camorra napolitana, atualmente as atividades do grupo colocam-no confortavelmente no topo da hierarquia mafiosa da Itália moderna, com um capital financeiro à volta dos 53 mil milhões de euros – acima, por exemplo, das receitas de empresas legítimas como a Intel, a Nike, a Coca-Cola ou a McDonald’s.
De acordo com os investigadores, na base deste crescimento estão a discrição com que conduzem as suas atividades e os laços profundos que mantêm nas comunidades locais de que fazem parte. Exemplo disso é o facto de a maioria dos chefes dos clãs não abandonarem as vilas remotas onde residem e de onde gerem as suas operações, isto apesar de terem milhões de dólares nas suas contas bancárias.
“Os clãs de Vibo Valentia [comunidade da Calábria italiana onde a maioria da Ndrangheta está sediada] estão enraizados em todos os aspetos do dia-a-dia, do próprio tecido económico e social da província”, explicou Vincenzo Capomolla, procurador adjunto da região. “Esta sentença demonstra o poder absoluto detido pelo clã Mancuso”, acrescentou.