Em julho, depois de Paulo Brandão ter cessado funções como diretor artístico do Theatro Circo, ficou-se a saber que Luís Fernandes iria acumular a direção da sala municipal bracarense com a do gnration, numa estratégia de transição para uma nova lógica programática. Embora a “procura de uma filosofia de programação” conjunta requeira tempo para pôr em marcha experimentalismos e amadurecer reflexões, a programação apresentada para o primeiro quadrimestre de 2024 desvela os primeiros sinais de mudança.
O mais claro é a entrada em cena de uma equipa multidisciplinar que assessorará Luís Fernandes nas diferentes áreas de especialização. Esse foi, aliás, um dos requisitos para que o atual diretor artístico da empresa municipal Teatro Circo Braga aceitasse o cargo para o qual foi convidado: “Senti que era fundamental que existisse esta diversidade de visões para que este entendimento fosse levado a bom porto”, refere Luís Fernandes ao Observador.
O próprio divide a área da música com Ilídio Marques, aos quais se juntam Sara Borges, responsável pelo Serviço Educativo e Maria Inês Henriques, nas Artes Performativas. É precisamente na música que acontecerá um dos pontos altos da programação, com a passagem já esgotada de Patti Smith pelo Theatro Circo no dia 24 de março. Esta será a segunda de duas datas únicas da intérprete e escritora norte-americana em Portugal, que, ao lado do Soundwalk Collective, apresentará o espetáculo Correspondences (a primeira data é a 22 de março, no CCB, em Lisboa).
Estreado em 2022, na inauguração da exposição Perfect Vision do Centro Georges Pompidoum, em Paris, a performance resulta de uma viagem de Stephan Crasneanscki por lugares mais ou menos remotos de todo o mundo, no encalce de sons e episódios extraordinários da humanidade. Dessa recolha, que levou o fundador dos Soundwalk Collective a cruzar-se com percursos sonoros de cineastas, poetas e revolucionários ao longo de mais de dez anos, nasceu uma composição experimental habitada pela poesia e voz de Patti Smith, cuja última passagem pelo país aconteceu no festival Vodafone Paredes de Coura, em 2019.
A programação focar-se-á também no jazz, que assumirá maior preponderância no Theatro Circo a partir de 2024. É neste contexto que o veterano saxofonista Joe Lovano, vencedor de um Grammy e detentor de mais 14 nomeações, se apresentará no dia 11 de abril em Braga, trazendo a palco as composições do seu Tapestry trio (Marilyn Crispell no piano e Carmen Castaldi nas percussões). Também o prestigiado contrabaixista português Carlos Bica passará pelo Theatro Circo a 13 de janeiro, propondo um olhar contemporâneo sobre a obra de Ludwig van Beethoven, ao lado de João Barradas (acordeão), Daniel Erdmann (saxofone) e Dj Illvibe (gira-discos).
Já o gnration acolherá a apresentação do novo quarteto de Rodrigo Amado, cujo nome The Bridge homenageia Sonny Rollins. Rodeando-se de figuras seminais da música improvisada europeia e americana (Alexander von Schlippenbach ao piano, Ingerbrigt Haker no contrabaixo e Gerry Hemingway na bateria), o saxofonista português, eleito pela publicação El Intruso como o melhor saxofonista tenor de 2023, persegue o seu caminho de composição em tempo real, mostrando no dia 5 de abril o resultado de uma linguagem aprimorada no aclamado álbum de estreia do quarteto, Beyond the Margins (2023).
Ainda no jazz, destaque para o concerto de Alabaster DePlume, que irá ao gnration no dia 2 de março a pretexto de Come with fierce grace (2023), sucessor do fantástico Gold (2022), o sexto álbum da carreira deste visionário do novo jazz londrino é fruto das mesmas sessões de gravação que deram origem ao seu antecessor e que juntaram o saxofonista a vários nomes que estão a redefinir as interseções do jazz europeu com outros géneros musicais e manifestações artísticas.
Novos ciclos e mais diálogo com o público
Outro dos pontos altos da programação é a passagem de Jards Macalé por Braga. O compositor brasileiro de 80 anos, autor de sucessos cantados por Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso ou Nara Leão (de que são exemplo Anjo Exterminado, Vapor Barato ou Pula Pula (Salto de Sapato)) interpretará o seu álbum homónimo de 1972 no gnration, a 15 de março.
Por seu lado, o guitarrista Steve Gunn e o pianista David Moore regressam a uma sala que já os recebeu em nome próprio para, desta feita, apresentarem o seu disco colaborativo Reflection vol.1: Let the Moon be a Planet (2023). O concerto acontece no dia 23 de fevereiro. Praticamente uma semana depois é a vez de MIKE, nome de referência do novo hip hop underground de Nova Iorque, mostrar Burning Desire (2023), o seu sexto trabalho de originais (29 de fevereiro). Ainda em fevereiro, no dia 17, chega a Braga a colaboração entre o artista multimédia Ioscil e o artista sonoro e compositor Lawrence English, que em 2017 fez parte do cartaz do festival de música eletrónica experimental Semibreve, do qual Luís Fernandes foi mentor e diretor.
Como vem sendo habitual, o gnration terá um open day de aniversário. Os 11 anos celebram-se a 27 de abril e, entre outras propostas, apresentam a banda de culto de São Tomé e Príncipe, África Negra, James Holden, que trará consigo o seu último álbum This is a High Dimensional Space of All Possibilities (2023) e o projeto que Jonathan Saldanha desenvolveu no Uganda com o coletivo Nyege Nyeg e com a trompetista e ativista Florence Lugemwa.
Enquanto o gnration se propõe a “trabalhar em propostas desafiadoras para o público”, numa lógica de continuidade, como refere Ilídio Marques, o Theatro Circo assumirá uma rutura mais acentuada com o modelo de gestão do passado. Aí, todos os ciclos existentes foram extinguidos para dar espaço a novos ciclos, numa tentativa de colmatar áreas “sub-representadas” sinalizadas pela equipa diretiva de Luís Fernandes.
Um dos primeiros a ser apresentado é o Ciclo Contraponto, que dará enfoque à música de criadores “eruditos ou ousados” do século XX e XXI. A 6 de janeiro, a obra do compositor francês Olivier Messiaen, Quarteto para o fim dos tempos, será interpretada pelo Pluris Ensemble, uma plataforma de músicos bracarenses fundada em 2022. Segue-se a compositora britânica-iraniana Shiva Feshareki, que estreará, a 16 de março, Transfigure, obra que coloca no mesmo campo a harpa, o clarinete, o contrabaixo, a eletrónica e que conta com a participação da voz soprano dos alunos da Universidade do Minho. Por fim, a 13 de abril, o grupo de música de câmara Ars Ad Hoc estrear-se-á em Braga, com a interpretação de obras do clarinetista norte americano Morton Feldman, de Claude Debussy e Igor Stravinsky.
Já o Ciclo Contexto promoverá um espaço de partilha entre artistas e público, onde se abordarão processos criativos e questões associadas às temáticas identificadas na programação do Theatro Circo. Por lá passará não só Shiva Feshareki, a 16 de março, como também a coreógrafa Olga Roriz, a 6 de janeiro, na antevisão de A Hora em que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros, criação baseada na dramaturgia do austríaco Peter Handke (12 de janeiro).
A relação com os públicos será ainda trabalhada no Ciclo Espaço Comum. Com curadoria do coletivo portuense PELE, este “será um dispositivo de reflexão e de ocultação do público” para pensar o lugar que o teatro municipal deve ocupar numa cidade, explica Luís Fernandes. Para já, está garantida uma sessão por quadrimestre. A primeira acontece no dia 3 de fevereiro.
Nesta nova dinâmica de diálogo e abertura à cidade, destaca-se não só o envolvimento de públicos na criação dos espetáculos – como acontece com Calma, é só amanhã!, peça de Nuno Preto que tem como protagonistas pessoas de Braga e que está enquadrada na celebração dos 50 anos do 25 de Abril (24 abril) – como também o papel da arquitetura do teatro no entendimento dos próprios processos criativos. “Interessa-me muito convocar o público para experiências arquitetonicamente desafiadoras, que permitam explorar perspetivas diferentes dentro da sala”, diz Maria Inês Henriques.
Exemplo disso será a instalação Concerto de Tiago Cadete, que inverte a configuração clássica da sala de espetáculo. Aqui, o espetador será transposto para o palco enquanto o espetáculo, composto por 20 caixas de som com múltiplas vozes de migrantes latino-americanos, se desenrolará e espalhará pela plateia (5 de abril). Já [O Sistema], de Cristina Planas Leitão, é uma reflexão que “não vive sem o público” e questiona, num exercício de teatro participativo, os diferentes tipos de sistema políticos, sociais, coletivos e intelectuais em que nos movemos (2 de fevereiro).
Experimentalismo e inclusão
Luís Fernandes chama estes experimentalismos ao Theatro Circo para assegurar a própria vitalidade e dessacralização de uma sala que está prestes a completar 109 anos de idade. A efeméride será celebrada a 19 e 20 de abril, com a garantia de sábado aberto para a “participação de diferentes famílias”.
Haverá oficinas de criação colaborativa para o público mais jovem, no âmbito da música e das artes plásticas, um concerto de música de câmara do departamento de Música da Universidade do Minho e um concerto especial de Bruno Pernadas que revisitará na integra e “com uma roupagem nova” o seu primeiro disco, How Can We be Joyful in a World Full of Knowledge? (2014).
O aniversário trará ainda a Braga a dupla de coreógrafos Jonas&Lander, que aqui apresentará o seu espetáculo de dança Bate Fado, amplamente elogiado pela crítica, e a DJ Umafricana, projeto da escritora e empreendedora Sandra Baldé que porá o foyer do Theatro Circo a dançar “até que nos expulsem”, garante Luís Fernandes.
Neste novo modelo de direção artística, as micro temporadas serão anunciadas de quatro em quatro meses, uma dinâmica que o atual diretor enaltece por lhe permitir trabalhar cada conteúdo com mais minúcia, sem abdicar de “boas oportunidades” que possam surgir em áreas mais dinâmicas, como a da música. Haverá ainda uma preocupação redobrada com a inclusão, com o reforço dos espetáculos com áudio descrição e Língua Gestual Portuguesa, assim como com a programação infantojuvenil. É neste âmbito que se realizará a mini-conferência Para que serve a cultura?, ministrada por José Maria Vieira Mendes (13 de janeiro) e o ciclo de filmes de animação Preferia Não o Fazer (24 de fevereiro), em que se procura refletir sobre as motivações e objetivos de uma revolução e sobre a importância de se saber dizer não.
A programação do Theatro Circo para o primeiro quadrimestre do ano conta ainda com os concertos de Swans, que chegam a Braga acompanhados de Maria W Horn para estrearem o seu mais recente disco, The Beggar (2023) (20 de fevereiro), de Cristina Branco, com o seu álbum Mãe (2023) (3 de fevereiro) e da estreia do projeto Cara de Espelho, que engloba elementos dos Ornatos Violeta, Deolinda e A Naifa (24 de fevereiro). A apresentação de O Salto, da companhia A Turma, de Tiago Correia (26 de janeiro), do espetáculo de dança Uma Partícula Mais Pequena Que Um Grão de Pó, de Sofia Dias e Vítor Roriz (16 de março) e da nova peça do grupo Mariana Tengner Barros, Threshold (9 de março), completa a lista de destaques do Theatro Cico.
Por seu lado, o gnration acolherá o espetáculo audiovisual ROTOЯ – SONIC BODY, do artista austríaco Peter Kutin, com projeções de vídeo de Patrick Lechner (12 de janeiro); a performance audiovisual que une a produtora britânica Nik Colk Void ao artista digital francês MAOTIK (23 de março); o solo para piano e eletrónica Corpo-escuta / a body as listening, de Joana Sá (26 de janeiro); a estreia em Portugal da DJ e produtora britânica Nabihah Iqbal (12 de abril); e a apresentação do novo disco de Carlos Maria Trindade (24 de janeiro).
Os ciclos Radiografia, focado nos jovens compositores bracarenses, e alt.history, um conjunto de conversas online sobre as narrativas perdidas da cultura digital, voltam a estar na agenda, que terá ainda uma exposição coletiva integrada na rede European Media Art Platform, da qual o gnration faz parte.