Chegou a Portugal já envolto no sucesso que fez no exterior. Nascida em 1984, Hanna Bervoets depressa se transformou numa das autoras de maior proeminência da sua geração no seu país. Conta já com sete romances, um dos quais adaptado ao cinema, para além de contos e peças de teatro. Em 2020, recebeu o prémio Frans Kellendonk pelo conjunto da sua obra. Este Tivemos de remover este post, escolhido para promover a literatura neerlandesa, teve uma tiragem inicial de 650 mil exemplares. Esperava-se, por isso, uma coisa contundente.

No romance, o leitor acompanha Kayleigh, que, enterrada em dívidas, aceita um emprego como moderadora de conteúdos de uma rede social, cujo pagamento é 20% superior ao do emprego anterior. As regras para a moderação são apertadas, e servem para que se decida o que será banido da plataforma. Isto significa que, ao longo de horas, Kayleigh pode assistir a enormidades – a essas que acabam por não ficar, de mão beijada, presentes na Internet para qualquer utilizador ver. A cabeça dentro do écrã, que existe como janela aberta para qualquer crueldade ou choque possível de imaginar – e que nem por isso é matéria de relevo no romance –, vai sendo aliada, ao longo da narrativa, aos contornos da vida pessoal de Kayleigh, o que inclui um namoro com uma colega da empresa (Sigrid), também este de contornos algo tóxicos.

O romance mereceu o elogio de Ian McEwan, que o considerou “soberbamente equilibrado, psicologicamente astuto e subtil”. É certo que tem pontos fortes, e lê-se a um ritmo de thriller, mas consideramos aqui que há pontos de desequilíbrio, nomeadamente na forma como a relação entre Kayleigh e Sigrid se vai desenvolvendo. Ao longo da leitura, percebe-se que a premissa criada a priori pode ceder: o livro não abre as portas para a enormidade da Internet; esta existe ao longe, não fica explicada, o que fica explicado pelo desgaste da personagem. É Kayleigh que, ao longo da narrativa, se vai mostrando farta de levar o trabalho para casa, das tentativas de esclarecimento por terceiros sobre o pior que viu no computador do trabalho – sem redenção, puro vampirismo. Com isto, se o leitor procura os conteúdos da dark web, o proibido censurado, acaba por se apanhar numa informação um tanto cinzenta – sabe-se de alguns exemplos, mas sempre relativamente brandos, e nunca se chega, nesse campo, a estar em cena.


Título: “Tivemos de remover este post”
Autora: Hanna Bervoets
Tradução: Maria Leonor Raven
Editora: Dom Quixote

Páginas: 128

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A Internet acaba por contaminar a vida: Sigrid, por exemplo, torna-se permeável às teorias da conspiração que devia andar a censurar online. E aqui avalia-se o peso de um trabalho assim: quem defende teorias anti-constitucionais ou anti-científicas foi sempre assim ou foi influenciado/afectado por horas expostas a lixo informático?

Todo o texto é uma carta enviada por Kayleigh ao senhor Stitic, que está a mover um processo, em nome de antigos colegas de Kayleigh, contra a empresa em questão, sobre as condições de trabalho e questões relacionadas com a saúde mental. O texto, contudo, sabe mais a confissão perante um terapeuta, a vida despejada, do que a documento legal – e é-o. O problema é que, ao longo da narrativa, tudo sabe a sugestão. O que Ian McEwan parece ter encarado como subtileza sabe mais a superficialidade. Não é que se não se leia de forma escorreita – pelo contrário, a leitura prossegue, os parágrafos impõem-se, não há solavancos –, mas falta ao texto uma certa noção de clarividência, pontos que expliquem o mundo, momentos em que o ser humano se mostre na sua plena condição. Em vez disso, o livro é um conjunto de momentos em que qualquer coisa aflora, não se compondo num todo orgânico, não havendo coesão. As personagens parecem existir muito ao longe, e as relações empáticas entre elas – o que inclui a narradora – e o leitor não têm tempo para se desenvolver. O que parece, a priori, uma boa ideia acaba por ser a superfície dessa boa ideia; há o foguete, mas não o mergulho; há a sinopse, mas não a chapada.

As questões inerentes às redes sociais e aos moderadores de conteúdo são cedo abandonadas para que a autora se ponha, ao invés disso, a descrever uma relação tóxica, que, para espanto do leitor, também parece não ir a lado nenhum. Prova disso é o fim: estando o leitor à espera de que as pontas se atem, leva com um livro que parece terminar a meio, cujas últimas páginas, que lhe dariam sentido, parecem ter sido arrancadas à pressa. O final abrupto sabe a preguiça na prosa, ou a desconhecimento do caminho. Mesmo a ideia de confissão a Stitic acaba por se tornar desfasada – o leitor espera força, impacto, conteúdo quase traumatizante, e acaba de mãos vazias, com tudo aflorado, com tudo mencionado ao de leve, com tudo a voar à solta. Ou seja, o leitor nem chega a importar-se com o relato.

Acaba por ter alguma graça ver, em Singrid, que a constante exposição a teorias da conspiração pareceu suficiente para a contaminar – ou seja, sendo o seu papel, também, bloquear informação falsa, não é coisa sem significado que tenha deixado de saber distingui-la de verdade, o que leva a que se entenda que outros casos, não profissionais, estejam particularmente vulneráveis aos truques da Internet. Contudo, também isto poderia ter sido mais desenvolvido – criada uma clivagem na relação com Kayleigh, também esta existe de forma aparentemente volátil.

De resto, a prosa é escorreita, sem manias, sem gorduras. Isto não parece falta de estilo, mas uma questão estilística que agarra o autor à voz autoral. Ainda assim, como escrever um romance é mais do que saber escrever, acaba por ser gritante a falta de maturidade ou mesmo de trabalho posto lá dentro.

A autora escreve segundo a antiga ortografia