A juíza que assinou a sentença que, pela primeira vez, reconheceu um contrato de trabalho a um estafeta diz que o aviso de receção da carta que o Tribunal acreditava estar a enviar para a Uber foi assinado na morada que constava no sistema Citius como pertencente àquela plataforma e que, por isso, validou a citação. Porém, a morada era, segundo noticiado, da Glovo, o que levou a que a Uber Eats não tivesse sido notificada e, consequentemente, não tivesse contestado. E a não contestação pesou na decisão da juíza.
Em resposta a questões enviadas pelo Observador, a juíza Cristina Cruz descarta, assim, responsabilidades. Refere que “aquando da prolação da decisão encontrava-se junto aos autos A/R [aviso de receção] da carta remetida para citação da ré, assinado, na morada que à data do mesmo sistema (plataforma CITIUS) constava“, pelo que “foi proferida a decisão nos termos e com os fundamentos que dela constam”. Ou seja, como o aviso de receção estava assinado na morada que constava no Citius como pertencente à Uber, foi assumido que a empresa tinha sido notificada.
Porém, soube-se esta semana, a Uber garante que “não foi ouvida nem notificada”. O Negócios noticiou esta quinta-feira que a notificação que permitiria à Uber contestar foi enviada para a morada da Glovo, informação que esta segunda plataforma confirmou ao Observador. “Confirmamos que foi recebida uma notificação endereçada a outra empresa. O erro foi imediatamente reportado ao tribunal por via eletrónica a 11 de janeiro”, indicou um porta-voz.
Glovo recebeu notificação do Tribunal que era destinada à Uber
Ao Observador, o advogado especialista em direito laboral Pedro da Quitéria Faria explica que, nestes casos, o Tribunal recebe do Ministério Público a ação declarativa de reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre as partes e é com base nessa documentação que os funcionários judiciais inserem a informação — incluindo sobre a morada — no Citius.
A ação proposta pelo Ministério Público, como se lê na própria sentença, resultou de uma ação inspetiva desenvolvida pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) que detetou indícios de que o estafeta em causa seria um falso trabalhador independente, indícios esses que foram enviados para o MP. O Observador questionou, por isso, tanto o Ministério Público como a ACT para perceber qual a morada da Uber que cada uma destas entidades considerou, mas aguarda resposta.
Na sentença, é referido que “citada, a ré não contestou” e essa não contestação da Uber pesou na decisão do Tribunal do Trabalho, que reconheceu a existência de um vínculo de trabalho dependente entre as duas partes, obrigando a empresa a integrar o trabalhador.
Na resposta ao Observador, a juíza que decidiu a sentença indica que “inexiste qualquer ato da signatária [Ministério Público] praticado pela forma presencial, pelo que nada existe no processo que não conste da plataforma CITIUS”. Acrescenta que “aquando da conclusão pela seção com ato classificado para prolação de sentença, sabendo o número de ações que correm referentes à mesma situação (ainda que para distintos prestadores/beneficiários) solicitou informação quanto à eventual apresentação de contestação e junção a outros autos” e “foi informada não ser possível aquilatar (designadamente pelo nome do “trabalhador”) da referida apresentação”.
Explica, depois, que o aviso de receção da carta remetida estava assinado na morada que constava no Citius, pelo que foi proferida a decisão nos termos que dela constam.
A Uber entende que, uma vez que não foi notificada, a decisão do Tribunal “muito provavelmente não terá efeito”. Advogados consultados pelo Observador defendem que a empresa poderá tentar arguir a nulidade do processo, alegando que o direito de defesa não lhe foi garantido.
Numa resposta enviada ao Observador, a associação que junta a Uber, a Bolt e a Glovo (APAD) considera que os processos iniciados para o reconhecimento de contratos de trabalho a estafetas foram conduzidos “de forma apressada” e “acelerados por uma pressão política”, tendo resultado em “erros processuais”. No caso da sentença do Tribunal do Trabalho de Lisboa, a APAD diz que esses erros resultaram em “falta de ponderação”.