Apontando o dedo à direita e a um “processo de canibalização” que fica exposto a cada debate que passa, a esquerda continua a preferir mostrar-se em harmonia, debatendo de forma “construtiva” e sem se atacar mutuamente. As expressões citadas são de Rui Tavares, que falou assim das diferenças entre esquerda e direita durante um debate tranquilo e cordial com o secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, em que ambos fizeram questão de se mostrar disponíveis para “convergências” e divergiram onde era mais expectável: na visão que têm sobre a União Europeia, partindo do caso da Ucrânia.

O debate começou precisamente pelas possibilidades que têm de convergir. Por um lado, com um PCP que parece cada vez mais disponível a conversar com o PS e o resto da esquerda: Paulo Raimundo voltou a referir, em vários momentos, o papel que o PCP teve ao “virar o tabuleiro” político em 2015 (leia-se, a dar início à geringonça que Rui Tavares, então fora do Parlamento, já desejava) e prometeu “nunca falhar a uma convergência” que dê respostas aos problemas “concretos” das pessoas, apontando para várias áreas prioritárias (salários e pensões, SNS, habitação e questões laborais).

Por outro lado, Rui Tavares respondeu ao apelo de Pedro Nuno Santos ao voto útil: se o secretário-geral do PS disse que um voto no seu partido servirá para implementar as ideias do Livre, Tavares ironizou dizendo que “votar no PS às vezes nem para implementar as ideias do PS serve” e recusando que os partidos sejam “autossuficientes“. Foi precisamente por isso que defendeu a forma “construtiva” como a esquerda se tem mostrado nestes debates, lembrando a “instabilidade” que a extrema-direita trouxe a países como os Estados Unidos ou o Brasil — e, ao ouvir Raimundo defender que o PS nunca tomará as medidas necessárias por “vontade própria”, concordou: “É evidente”.

Encontrada a vontade de dialogar, falou-se então do mais óbvio ponto em que os dois partidos discordam — a visão que têm sobre o projeto europeu –, partindo da questão da guerra na Ucrânia. Paulo Raimundo voltou a tentar explicar-se: disse que a guerra na verdade já se arrasta desde 2014, que a UE e os EUA também são intervenientes e que devem apontar para caminhos “de paz”, em vez de “apoio à guerra” — uma posição que “estranharia” que levasse o PCP a perder votos. Neste ponto, Rui Tavares fez questão de se distanciar do PCP: frisou que a Ucrânia “entregou o seu arsenal nuclear em troca de garantias pela soberania” e mesmo assim, com a Rússia de Putin, “nunca mais teve sossego“.

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Mas o líder comunista foi mais longe nas críticas à UE, culpando as instituições europeias pela decisão de privatizar a TAP e acusando a Europa de empurrar migrantes para o “cemitério do Mediterrâneo”, acusações que Tavares rebateu (a primeira porque “não há nada no Direito Europeu” que obrigue a essa privatização, a segunda porque os acordos com a Turquia nesse sentido foram assinados por cada país de forma individual, e não pela UE).

Estes pontos levaram a que Tavares admitisse que o PCP e o Livre têm posições divergentes, ainda que “coerentes” — sugeriu que outros partidos têm posições “submissas”, “oscilantes” ou “omissas” –, sobre a UE.  “O Livre acredita que o projeto europeu é essencial para a globalização. A única hipótese que os europeus têm, perante a sua dimensão, é unirem-se para lutar contra o imperialismo”, incluindo o russo. “Portugal tem mais a ganhar em tornar a UE num espaço de democracia, social, ambiental e forte no mundo do que imaginar como seria se não estivessem na UE”, acrescentou. Um quadro europeu que, para o PCP, é preciso “rever” (Raimundo não falou em saída por si só, usando uma formulação vaga e mais parecida com a que se encontra no programa do partido).

Nos restantes pontos que foram trazidos a debate, e mesmo que as propostas dos dois partidos tenham diferenças e nuances entre si, o tom foi cordial e a identificação das prioridades coincidiu. Se Raimundo defendeu que as questões laborais devem estar “no centro do debate” — um ponto que pode dificultar negociações com o PS –, Tavares concordou e falou sobre a necessidade de adotar propostas como a semana de quatro dias, que poderão aliviar o stress e os problemas de “saúde mental” na população. Raimundo deu exemplos sobre horários desregulados ou os novos desafios do teletrabalho e concordou: a forma como se trabalha em Portugal pode levar a essas situações limite.

O secretário-geral do PCP falou, ainda a esse propósito, sobre o problema dos salários, que diz poder ser alterado através dessas mexidas nas leis laborais, e relacionou essa dificuldade com a emigração jovem: “Precisamos de estancar esta sangria de famílias separadas, de vidas às vezes destruídas que obrigam milhares a procurar lá fora o que o país não é capaz de dar. O problema é os que são empurrados do país”.

Tavares mostrou-se genericamente de acordo com a mesma preocupação, defendendo que “o que importa é que as pessoas possam voltar”. “Eu já emigrei e já voltei”, exemplificou, argumentando que é preciso dar oportunidade às pessoas para que conciliem melhor a vida pessoal com a profissional em Portugal, e garantindo que a sua proposta para a criação de uma “herança social” poderia gerar oportunidades que os jovens trabalhadores procuram, hoje em dia, no estrangeiro.

Quando o tema teve a ver com os protestos das forças de segurança, ambos se mostraram de acordo com a hipótese de estas fazerem greve, ainda que com “serviços mínimos” (ressalva de Rui Tavares, que contestou a proposta do Chega para que possam ter filiação partidária) e mantendo uma especial responsabilidade e respeito pela Constituição (versão de Raimundo, que quer uma fusão da GNR com a PSP). Mais uma vez, em tom cordato — é esse o tom que a esquerda acredita que a beneficia junto do eleitorado e que quer manter até ao fim da maratona de debates.

 O diálogo mais relevador

Paulo Raimundo — O que precisávamos todos era de construir aquilo que é a vontade do povo português como é a vontade de todos os povos, que é construir as soluções da paz, essa é que é a questão fundamental. E é isso que se impõe às forças da paz e progressistas, contribuir para que se pressione até ao limite das nossas forças para concretizar os caminhos da paz.

Rui Tavares — Mas para isso os agressores têm de recuar.

Paulo Raimundo — Todos eles, naturalmente. Todos os que agridem. Esse é o grande desafio que temos. Se não o fizermos, arriscamo-nos a estar a alimentar um escalar inconcebível da guerra. Temos que olhar para aquilo que temos e não para aquilo que gostaríamos, e esta União Europeia é a UE que empurra milhares de migrantes para o cemitério do Mediterrâneo e que negoceia com a Turquia como se fosse mercadoria. É a UE que disse ao Estado Português pode meter dinheiro na TAP desde que o fim seja o caminho da privatização. Precisamos de ver o quadro em que estamos e não outro. (…)

Rui Tavares — (…) Acho que há muitas caricaturas em relação à União Europeia que importa esclarecer, quem assinou um tratado com a Turquia em relação aos refugiados não foi a UE. Essa questão foi ao Tribunal de Justiça da UE e foram os estados-membros um a um. Podemos queixar-nos e criticar a UE quando isso é merecido, mas neste caso escapam pelos pingos da chuva Lisboa, Berlim, Madrid, as capitais que foram quem assinou esse tratado. Da mesma forma em relação à privatização da TAP, não há nada no Direito Europeu que diga que a TAP tem que ser privatizada.

Paulo Raimundo — Claro, isso é verdade, o problema não é esse, o problema é o resto.

Rui Tavares — Um Governo da UE pode ter a TAP nacionalizada como privatizada. Aqui a diferença é como naquela anedota em que alguém diz: ‘Oh meu amigo, como é que eu vou para Lisboa?’ E a resposta é: ‘Eu se fosse a si não começava aqui’. Nós temos de começar aqui, aqui onde estamos. Nós estamos na UE, Portugal tem muito mais a ganhar na UE, num espaço de democracia, social, ambiental e forte no mundo, do que em imaginar se não estivesse na UE e no Euro.