Depois de serem conhecidos os resultados de um relatório do Tribunal de Contas com críticas à falta de planeamento e ao excessivo recurso ao ajuste direto durante a preparação da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), a Igreja Católica, a Câmara de Lisboa e o próprio Governo reagiram para valorizar o escrutínio público e para defender as opções tomadas com a organização do evento, que levou, segundo a organização, 1,5 milhões a Lisboa em agosto do ano passado.
Em declarações à Rádio Observador, o coordenador do grupo de projeto do Governo para a JMJ, José Sá Fernandes, salientou que “o relatório do Tribunal de Contas, no seu cômputo geral, é bastante positivo”, limitando-se a descrever factualmente o que “foi apresentando para fiscalização”.
“Em relação à parte que me toca, ao grupo de projeto e ao que a secretaria geral da Presidência do Conselho de Ministros fez, o relatório é bastante positivo”, assinalou Sá Fernandes, apontando ainda que o grupo de projeto — que agiu em nome do Governo nas competências que foram atribuídas durante a organização tripartida da JMJ — recorreu a concursos públicos em 90% do valor dos contratos que adjudicou. Só “o resto é que foi por ajuste direto”.
Sá Fernandes diz ainda que “não há críticas duras em relação à generalidade dos contratos” e que “as coisas foram bem organizadas”, tendo a JMJ corrido bem “em termos de segurança e em termos de mobilidade”.
De acordo com o relatório do Tribunal de Contas, a Jornada Mundial da Juventude, que decorreu entre 1 e 6 de agosto de 2023 em Lisboa com a presença do Papa Francisco e de 1,5 milhões de jovens de todo o mundo, custou ao erário público mais de 65 milhões de euros. Mais de metade do valor dos contratos públicos foi adjudicado por ajuste direto, o que se traduziu em prejuízos para o interesse público.
Há também uma crítica apontada às obras do controverso altar-palco da JMJ: alguns dos empreiteiros subcontratados pela Mota Engil não tinham habilitações para a obra. Além disso, o relatório diz ainda que o grupo de projeto liderado por Sá Fernandes custa ao erário público cerca de 35 mil euros por mês. Ficando em funções até ao final de 2024, como está previsto, a equipa deverá custar mais de 1,3 milhões de euros aos cofres públicos.
Grupo de trabalho da JMJ custa 35 mil euros por mês e mantém funções até final de 2024
Ao Observador, Sá Fernandes desvaloriza essa referência e diz que o grupo está em funções porque ainda tem várias tarefas em mãos, incluindo o acompanhamento de um conjunto de obras de grande envergadura que resultam da JMJ e que vão ser o “grande legado” do evento. Estas obras incluem a próxima fase de relocalização dos contentores que existiam na zona do parque Tejo, onde foi criado um grande parque verde, uma passagem pedonal por cima do IC2 e ainda a recuperação da Manutenção Militar, onde esteve instalada a organização da JMJ.
“Eu ganho 2.800 euros, que é o que ganha um diretor municipal”, disse José Sá Fernandes, dizendo que os outros funcionários do grupo também ganham “valores na ordem dos 2.500 euros”, que são normais para técnicos superiores com as competências em questão. Sá Fernandes garante ainda que não há qualquer crítica no relatório do Tribunal de Contas, que se limita a “relatar o facto” de o grupo ainda existir e ter estes custos.
Já a Câmara Municipal de Lisboa, num comunicado enviado ao Observador, disse estar satisfeita com o relatório e lembra que a JMJ “representou um enorme desafio para o País e, muito em particular, para a Câmara Municipal de Lisboa, que tanto se empenhou para que tudo estivesse pronto, com o menor custo para a cidade e aproveitando os investimentos feitos para o futuro da cidade”.
“Este foi um processo com enorme escrutínio, quer institucional, quer no espaço público”, diz a autarquia liderada por Moedas. “Pode concluir-se do teor do relatório que depois da auditoria não é apontada nenhuma dúvida ou reparo relevante sobre a atuação da CML na condução deste processo.”
Relativamente a uma das críticas apontadas pelo Tribunal — em relação à exceção legal criada para permitir ajustes diretos com valores superiores aos limites habituais — a autarquia recorda que, “apesar de a JMJ ter sido anunciada em janeiro de 2019, só no último trimestre de 2022 houve uma clarificação das tarefas de cada uma das entidades envolvidas na sua implementação”. Por isso, o Estado teve de “criar mecanismos de celeridade processual, autorizando o recurso legal a ajustes diretos”.
Quanto à construção do altar-palco, a câmara diz que o Tribunal de Contas auditou os contratos adjudicados pela autarquia, “não tendo detetado irregularidades financeiras, o que o Ministério Público corrobora”.
“Os mais de 200 procedimentos de contratação pública levados a cabo pela CML foram levados ao conhecimento do TdC, com exceção de um procedimento que, por lapso, não foi reportado, tendo porém sido todos publicitados no Portal Base, nos termos legais”, diz a câmara. “O relatório do TdC valida todo o processo procedimental do lado da CML. Ou seja, os mais de 200 procedimentos não levantam questões ao TdC.”
Cardeal Américo Aguiar elogia escrutínio e promete contas da Igreja até maio
Da parte da Igreja Católica, o cardeal Américo Aguiar — que foi o presidente da Fundação JMJ, organismo que representou a Igreja na preparação do evento — limitou-se a dizer que não lhe cabe comentar os resultados do relatório, que se debruçou sobre os gastos do Estado e não sobre os gastos da Igreja.
“O escrutínio e a transparência na utilização dos fundos públicos são bases fundamentais do fundamento de uma sociedade democrática. Nesse sentido, este relatório do Tribunal de Contas, referente aos apoios públicos para a realização da Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, é um sinal muito positivo do normal funcionamento das instituições nacionais”, disse Américo Aguiar numa mensagem áudio enviada ao Observador.
“Não me compete a mim, enquanto responsável pela Fundação JMJ, tecer considerações sobre o trabalho deste órgão de soberania”, acrescentou. “Gostaria apenas de destacar a importância da sua tarefa fiscalizadora, assim como o contributo do Tribunal de Contas, neste como em todos os outros casos de utilização de bens públicos para a melhoria da gestão da administração do Estado. As recomendações do Tribunal de Contas são importantes. São contributos para a melhoria dos procedimentos na administração pública e um incentivo para continuar um caminho de progresso no sentido do bem comum.”
O cardeal também voltou a reforçar o compromisso de “tornar públicas as contas da Jornada Mundial da Juventude” da parte da Igreja. “Está a decorrer a auditoria da Deloitte, a quem muito agradecemos. Mal a Deloitte termine a auditoria, nós teremos reunidas as condições para apresentar publicamente as contas finais da Jornada Mundial da Juventude”, sublinhou.
“Todos os portugueses vão ter acesso a toda a informação. Depois, na liberdade que nos caracteriza a todos, e que deve caracterizar o regime democrático neste estado de Direito em que vivemos, cada um acha bem, acha mal, concorda, discorda, mas será do conhecimento de todos, conforme a promessa que fizemos”, afirmou. “Acredito que, mal a Deloitte nos entregue o relatório final da auditoria, nós possamos fazer a apresentação. Estou convicto de que não passará do próximo mês de maio.”
Como o Observador noticiou em dezembro, a Fundação JMJ terá tido um saldo positivo na ordem dos 20 milhões de euros com a organização do evento. A Igreja tem-se comprometido a usar todo esse saldo para investir em projetos relacionados com a juventude em Portugal.
Nota: corrigido às 10h58 com a informação de que foi mais de metade do valor dos contratos públicos, e não mais de metade do número de contratos, que foi adjudicado por ajuste direto.