No verão de 2005, a FX — canal e produtora de TV nos EUA — procurava incluir uma nova série de comédia na programação, algo que fosse mais arriscado e que estivesse mais distante da zona de conforto das típicas sitcom. Eram tempos diferentes, séries como Arrested Development passavam nos canais generalistas norte-americanos e, apesar da fraca audiência, confirmavam que havia público para esse tipo de comédia, fora do espectro da HBO e da animação (como South Park e Family Guy). Como solução — e filtro — a FX resolveu colocar duas séries no ar em simultâneo no registo “morte súbita”. Traduzindo: só uma delas poderia ganhar.
Eram as duas muito boas, uma ficou esquecida. A vencedora foi It’s Always Sunny In Philadelphia, as dezasseis temporadas — e ainda a contar — falam por si, a série criada por dois amigos, Rob McElhenney e Glenn Howerton, provou ser uma aposta vencedora. E, ao contrário de tantas produções com tamanha longevidade, nunca abrandou no tom ácido, deliciosamente parvo, despropositado e politicamente desconfortável. E se hoje é mais “correta” isso deve-se ao inevitável amadurecimento dos seus autores e à real impossibilidade de hoje se ser tão amoral: o humor deles foi servindo um tempo, sem doses gratuitas de piadas.
Starved foi a série que caiu no esquecimento. E se em 2024 se está a falar dela, é porque marcou quem a viu. Starved é um ótimo exemplo de um produto do seu tempo, quando o humor negro vivia de mãos dadas com o desconforto, não por via da ofensa, mas pela ideia de que tudo poderia ser um tema e que os temas poderiam ser tratados sem fronteira de género dramático. Starved reúne um conjunto de personagens com problemas alimentares. É feia, desconfortável e talvez não tivesse tido mesmo pernas para andar para lá dos seus sete episódios. Tanto em 2005 como em 2024, é óbvio porque caiu, era um ovni e, por melhor que fosse, o público que acumulou seria sempre muito limitado, o humor não era para todos e era preciso estômago para ver aquilo.
[o trailer de “Tires”:]
Isto tudo para chegar a Tires (“Pneus” em português), nova série de comédia na Netflix com seis episódios apenas, produção que garantiu uma segunda temporada ainda antes da primeira ir para o ar. Tires é uma série de hoje, mas parece de outro tempo — poderia ter acontecido em 2004-2006 —, pela forma como ignora aquilo que o espectador quer (ou aquilo que se pensa que ele quer) e se limita a explorar uma ideia ao longo de curtos episódios que, todos juntos, dão menos de duas horas.
Com o streaming, mesmo quando a Netflix parecia aprovar tudo, este género de séries parecia ameaçado de extinção. A recolha de dados de assinantes não promove o risco com erro e, por isso, passou a existir pouco espaço para bons deslizes como Tires, onde o humor boçal serve um propósito — sem ofender — e há uma sensação contínua de que a série não nos levará a lugar algum, ainda que a anrrativa pareça mover-se. Contas feitas, são detalhes que aqui pouco importam. Não há moral, não há plot, apenas existe o momento.
[Já saiu o quarto episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio e aqui o terceiro episódio]
Criada, escrita e protagonizada por Shane Gillis, Steve Gerben e John McKeever — este último realiza todos os episódios — Tires começa com um telefonema de Will (Gerben) para o pai, dono de um franchise de reparações de automóveis, a explicar porque é que comprou uma quantidade absurda de pneus para a garagem que está a gerir. A cena poderia existir para justificar o título, para lançar o problema — como é que eles agora se vão ver livres de tantos pneus? — ou para apresentar um filho impreparado para um cargo e incapaz de impor a vontade e colocar em prática as ideias necessárias à boa gestão do negócio. Só que não serve para nada disso. O grande golpe de Tires passa por fugir às normas do argumento televisivo e optar por experimentar em cada cena para ver o que acontece.
Por isso, a cena de abertura não é mais do que uma situação que se irá repetir em todas as outras cenas, ao longo dos seis episódios. A boçalidade de um negócio respira todo o ar, a inteligência parece sentar-se no banco de trás e Tires, para funcionar, tem de abraçar as más ideias das personagens e levá-las até ao fim. Parece coisa simples, mas não é. Tires tem muita graça porque é um ensaio da boçalidade sem nunca querer passar por ser aquilo que não é. E ao fazê-lo, porque o faz muito bem, é mais inteligente do que parece à primeira vista.
Por vezes é difícil de perceber se o gesto é intencional ou não — gosto de acreditar que sim — e que não é um acaso em que os seis episódios decorrem na expectativa de algo acontecer, algo que fica anunciado logo na primeira cena: afinal, quando é que o pai de Will aparece para lhe dar nas orelhas, perguntamos nós. Resulta. E, quando algo de facto acontece, não é nada de mais. Como seria de esperar. Beleza.
Porque, entretanto, somos alimentados com uma corrente torrencial de más ideias que Will e Shane vão explorando para tentar salvar o negócio. E isso passa por ser (aparentemente) mais inclusivo para as mulheres; por vender mudanças de óleo baratas para depois fazer negócios mais rentáveis com uma série de outros problemas mais caros; por meter miúdas em biquíni a lavar carros e, ao mesmo tempo, a vender uma série de outras coisas.
Pelo meio, acontecem dezenas de piadas de mau gosto, típicas da escola secundária e que são uma afronta para quem não vê para lá da pele. Tires é pouco dado à classe e à categoria, mas nunca nos engana. É assim porque não há outra forma de o ser naquele contexto, o vulgar aqui é um instrumento para que todo aquele ambiente pareça familiar, hostil e masculino. Sem aspirações de camadas ou de críticas, Tires é o que é: uma série de seis episódios numa garagem com gente frustrada (s9bretudo homens) que não souberam crescer. Venha a segunda temporada.