Mais para o fim de Soma das Partes, documentário de comemoração dos 60 anos da Orquestra Gulbenkian, realizado por Edgar Ferreira, com produção da Galope Films, o maestro finlandês Hannu Lintu conta-nos que uma orquestra representa bem o que deveria ser uma sociedade: “Sabes perfeitamente o que os teus colegas vão fazer, significa trabalhar em conjunto ao mais alto nível, como querem mesmo fazer algo melhor ouvindo cada um, e é assim que deveria ser uma sociedade”.
Não há aqui nenhum spoiler porque, neste filme, a intenção, mais do que demonstrar como se construiu uma das mais relevantes instituições culturais do país, é mostrar como cada parte que compõe a orquestra, dos maestros aos técnicos, do espectador aos diretores, asseguraram, ao longo de seis décadas, a continuidade de um projeto que gravou mais de 70 discos e atuou em mais de 35 países. O filme estará em 22 salas de cinema nacionais.
[trailer oficial do filme “Soma das Partes”:]
Começámos pelo fim, mas retornemos ao início. A história da orquestra Gulbenkian, criada em 1964, começou a ser contada pelas mãos de uma mulher visionária, Madalena de Azeredo Perdigão. Vinda da Figueira da Foz, licenciou-se em Matemática na Universidade de Coimbra e completou a formação musical no Curso Superior de Piano no Conservatório Nacional. A mão esquerda deu-lhe problemas, deixando a carreira de artista na gaveta. No entanto, em 1958, na Fundação Calouste Gulbenkian, passa a dirigir o Serviço de Música.
O ballet, a orquestra, o I Festival Gulbenkian de Música e a descentralização ligada ao encontro entre compositores nacionais e estrangeiros, com regiões de Portugal pouco ligadas à cultura, faria com que se tornasse num nome indissociável da história daquela entidade, da cultura portuguesa e, inevitavelmente, do filme Soma das Partes. “Só ela sozinha daria todo um outro filme. Teve a capacidade, num panorama cultural português pobre, de meter em marcha mecanismos e agrupamentos que enriqueceram a qualidade e criaram público pelo país”, conta-nos Edgar Ferreira.
De facto, o filme não se centra em Madalena de Azeredo Perdigão. Passamos pelo argentino Alejandro Olivia, primeiro contrabaixo solista entre 1976 e 2010. Vera Dias, primeira solista auxiliar desde 2006, lembra que, certo dia, antes de um concerto importante, lhe disse que a orquestra estava tão bem oleada que nem precisava de condutor. Outra das protagonistas é Maria João Pires, pianista cuja carreira global “coincidiu”, nas palavras do musicólogo Rui Vieira Nery com o percurso internacional da Orquestra Gulbenkian através dos concertos de Mozart. O maestro norte-americano Lawrence Foster é outras das presenças inevitáveis. Chegou a Lisboa para ficar entre 2002 e 2013, num período que serviu para um grande alargamento sinfónico da orquestra, dando-lhe prestígio mundial, para que quem não a conhecesse a passasse a tomar como próxima. “Era a joia mais bem guardada da Europa” — assim o diz no documentário.
Com todas as entrevistas gravadas no auditório principal da Fundação, localizada na Avenida de Berna, em Lisboa, Soma das Partes não nos fala só sobre os nomes mais mediáticos ou mais internacionais da Orquestra Gulbenkian. Vai ao osso deste corpo bem mais elaborado, que foi construído por portugueses, espanhóis, com e sem diploma, por tantas outras nacionalidades, por um elenco cada vez mais formado e, ao mesmo tempo, talentoso. Com arquivo da RTP revisitado (e outro inédito), percebemos como uma pequena orquestra de câmara se foi tornando uma máquina de melodias que progrediu, em seis décadas, desde o estilo barroco, à ópera passando, claro, pelo contemporâneo. Haydn, Mozart, Beethoven, Mendelssohn, Schubert: o reportório foi crescendo e nunca parou de se transformar.
Passando por várias gerações de maestros e músicos, “cada concerto é um tempo para o público”. A orquestra foi viajando pelos quatro cantos do mundo, da Ásia a cidades como Budapeste ou Paris. “É uma vida que nos absorve. Quando as luzes do palco se desligam, o que há?”, ouve-se a dado momento do filme. A tal “joia europeia” cumpre 60 anos graças aos dedicados e aos profissionais que levaram a Orquestra para casa, que sonharam com ela, que a viverem em pleno. “O meu maior desafio foi mesmo esse: representar esta Orquestra, mais do que falar de música no filme. Quis vincar a ideia do tempo, porque houve e há um tempo da música, das peças interpretadas, da consolidação do grupo. Foi preciso ir à essência e dar um ritmo próprio, uma cadência acelerada”, contou o realizador ao Observador.
Soma das Partes foi também à procura da orgânica de uma orquestra. Tal como bem explicado no filme, a música não tem um pulso regular. A condução da energia é feita através de uma melodia, de uma sequência harmónica, com microvariações que não constam da partitura. Há formas de interpretar, e sobretudo de sentir, por parte de um maestro que só ele poderá colocar em prática. O tempo tem de vir do próprio corpo, como bem conta Maria João Pires. E tudo tem de sair de forma perfeita. Ou, como explica Vera Dias, tem de haver “uma sensação de perfeição” no palco para que o público se sinta ligado àquela partilha artística que, muitas vezes, quando atinge esse nível, é muito difícil de colocar em palavras.
Edgar Ferreira, não sendo músico nem musicólogo, mas contando já com várias parcerias com a Fundação Gulbenkian (foi realizador do filme Coro — 60 Anos do Coro da Gulbenkian, por exemplo) sabia que seria impossível atingir a perfeição. Até porque, “se voltasse a este tema, iria ter um filme completamente diferente”. “Queríamos que este documentário fosse abrangente, que passasse a experiência que tive com estes músicos para o público, que as pessoas os conhecessem e que, quem sabe, partissem para a descoberta da Orquestra”, conta.
Ainda que a estrutura do documentário seja a mais clássica possível — imagens de arquivo cruzadas com entrevistas atuais — é dado espaço para ficcionar um pouco sobre os bastidores daqueles músicos em diferentes contextos: nas digressões, nos ensaios, nas horas antes de subir ao palco do Grande Auditório. Cada entrevistado revela-se como uma personagem, reunindo-se assim velhos e novos rostos para explicar a história de um organismo vivo do panorama cultural português.