A criação de uma comissão parlamentar de inquérito à gestão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, proposta por três partidos (Iniciativa Liberal, Chega e Bloco de Esquerda), deverá ser aprovada depois de todos os partidos terem sinalizado o seu apoio ao escrutínio da instituição, mas também à forma como o poder político falhou no controlo ou interferiu nas opções de gestão.
Apesar deste raro consenso relativo à segunda comissão de inquérito da atual legislatura — a primeira sobre o caso das gémeas foi imposta com um voto potestativo pelo Chega — os argumentos que fundamentaram este apoio mostraram uma divisão nítida entre a direita e a esquerda sobre as causas e responsáveis pela situação complicada que vive atualmente a Santa Casa. Já o diagnóstico é mais consensual: receitas em queda, subida de despesas descontrolada, negócios ruinosos no Brasil, apostas sem retorno em corridas hípicas, investimentos não sustentáveis na saúde em Portugal e problemas estruturais de sustentabilidade financeira e risco de ruptura de tesouraria.
A sustentar esta comissão de inquérito estão ainda as contradições dos testemunhos ouvidos em maio pelos deputados da comissão da Segurança Social e os documentos entretanto recebidos pelo Parlamento onde se inclui a auditoria forense aos negócios da Santa Casa Global, empresa de internacionalização.
Chega e PSD atiram aos anos de governação socialista e às administrações nomeadas pelos governos de António Costa.
Para André Ventura, a Santa Casa tem sido o “exemplo de tudo o que está errado em Portugal”, apresentando uma lista que vai desde o excesso de dinheiro público à gestão partidária e ao “polvo de ligações que desperdiçam dinheiro e prejudicam o povo”. O líder do Chega aponta o dedo aos dirigentes ligados ao PS que apostaram milhões nos negócios internacionais que tiveram zero retorno. Comparando a gestão da Santa Casa à “gestão que Sócrates fez do país”, e invocando as nomeações de amigos e familiares defendeu que o Parlamento “deve investir até ao fim quem beneficia e porque foi uma gestão mal feita”. Invocando as “500 chefias” atribuídas à instituição e as nomeações partidárias, destacou o caso do ex-dirigente do PS, Paulo Pedroso, que, segundo Ventura, é consultor com um salário de 3.700 euros.
O PSD não tem proposta própria, mas a deputada Isaura Morais afirmou que o país conta com o partido para esta missão, centrando o escrutínio nas tomadas de posição de dirigentes que não “terão acautelado devidamente o património da Santa Casa, colocando-a numa situação muito difícil”. Invocando os depoimentos e os documentos já na posse da comissão de trabalho e segurança social, Isaura Morais apontou ainda para “o incómodo que este assunto gera no PS que nomeou as duas equipas (a de Edmundo Martinho e de Ana Jorge)”, às quais atribui os problemas resultantes da internacionalização do jogo de “duvidosa legalidade” e os avanços e recuos. Replicando os números usados pela ministra da Segurança Social, Rosário Ramalho, responsabilizou a gestão da ex-provedora por um agravamento de prejuízos ao suspender a internacionalização e liquidar de forma precipitada a entidade criada para esta operação.
Visados à direita e sem uma iniciativa própria, os socialistas estão prontos a ir a jogo, mas, avisou logo Miguel Cabrita, as dificuldades “não são de hoje, nem dos últimos anos”. Citando várias vezes Santana Lopes, o provedor nomeado pelo governo do PSD-CDS, o deputado do PS defende que a análise deve abranger um leque temporal alargado. “Para esse trabalho o PS está disponível. Mas não está disponível para que a Santa Casa seja usada como arma de política de arremesso e para esconder os fracassos da gestão da autarquia (de Carlos Moedas).”
Para Miguel Cabrita, a culpa tem de recuar até antes da governação recente do PS. A “sustentabilidade da instituição foi posta em cheque pelo modo como o jogo online foi regulamentado pelo PSD que atribuiu as receitas ao Turismo de Portugal”, recordando Santana Lopes. Uma opção política e “danosa” que provocou o desequilíbrio financeiro e obrigou a instituição a procurar alternativas na internacionalização. Uma aposta que, defende, fazia sentido e foi aprovada pelo então Governo com “balizas” de controlo financeiro que não terão sido cumpridas. Lembrando ainda o impacto da pandemia que acentuou a fuga de apostadores para o jogo online, o PS defendeu a gestão de Ana Jorge que tinha em marcha um plano de reestruturação com a tomada de medidas difíceis de controlo financeiro e redução de custos com cargos dirigentes.
E envolve o Governo no rol de responsáveis pela demissão abrupta da mesa, “um processo político mal conduzido que gerou danos reputacionais” e uma exposição negativa e paralisia cujas repercussões na Santa Casa também têm de de ser escrutinadas.
Esta quinta-feira, a ministra do Trabalho e Segurança Social indicou que a nova mesa liderada por Paulo Alexandre Sousa irá apresentar em breve um plano de reestruturação, aquilo que Rosário Ramalho acusou Ana Jorge de não ter feito no ano em que esteve à frente da instituição.
José Soeiro do Bloco de Esquerda aponta como razão estrutural para os problemas a perda de receita do jogo online, para além de razões conjunturais como a pandemia que fizeram subir os custos. Mas também refere as decisões que procuraram a diversificação da receita e que revelaram “verdadeiros cambalachos”, desde a internacionalização à compra de mais de 50% da sociedade gestora do Hospital da Cruz Vermelha, sem esquecer os oito milhões investidos nas apostas hípicas que não saíram do papel e a aposta nos NFT que levou à contratação de uma empresa onde trabalhava o filho do então provedor.
Também considera que as audições já realizadas pelo Parlamento não recuaram o suficiente — centraram-se nos últimos quatro anos — e ataca a decisão intempestiva de afastar a mesa, considerando que estão por esclarecer as “motivações políticas”. E diz que o Bloco não aceitará que à “boleia do que aconteceu se queira vender em barda o património da Santa Casa” ou imputar o custo dos problemas aos trabalhadores.
Mariana Leitão da Iniciativa Liberal não passou ao lado das interferências políticas na gestão recente da Santa Casa. É preciso “averiguar a fundo a relação da mesa com as tutelas e escalpelizar a aparente permeabilidade de Santa Casa e a decisões motivadas por influências partidárias”. Para além de investigar as responsabilidades contratuais e financeiras que colocam em risco a sustentabilidade da instituição. Mas apelou também ao consenso de todos os partidos para que seja “possível escrutinar ao detalhe as decisões que lesaram a Santa Casa”.
Para Alfredo Maia do PCP, a instituição foi afetada pela entrada em cena dos jogos online. Foi uma decisão negativa para a concessão dos jogos sociais que não foi acompanhada de medidas que acautelassem a alocação de uma parte das receitas.
Livre, CDS e PAN também se mostrararam favoráveis a esta iniciativa.