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"Debaixo da Ponte": quando os adolescentes matam a sangue frio

Rebecca Godfrey escreveu "Under The Bridge" em 2005, como Truman Capote escreveu "A Sangue Frio" em 1965: a psique de uma comunidade refletida num crime. Agora é uma série na Disney+.

Reena Virk é aqui interpretada pela atriz Vritika Gupta, num elenco que conta ainda com Lily Gladstone e  Riley Keough
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Reena Virk é aqui interpretada pela atriz Vritika Gupta, num elenco que conta ainda com Lily Gladstone e Riley Keough

Reena Virk é aqui interpretada pela atriz Vritika Gupta, num elenco que conta ainda com Lily Gladstone e Riley Keough

Na noite de 4 de novembro de 1997, Reena Virk era apenas uma adolescente de 14 anos, cuja família, testemunhas de Jeová de origem indiana, não compreendia bem o fascínio da jovem por hip hop, por botas da Jeffrey Campbell, e muito menos pela bela Josephine Bell, a líder de um grupo de raparigas com propensões violentas. Mas, nessa mesma noite, a sua existência anónima, de vítima de bullying, com vergonha da sua origem étnica, tornar-se-ia um símbolo da violência racista, diletante e sem compaixão da sociedade canadiana, espelhada nos sete colegas de escola que a mataram. A sua história, que chocou a sociedade canadiana, trouxe ao de cima a memória do assassinato infame dos povos indígenas, num tempo em que o massacre do liceu de Columbine ainda não tinha acontecido e os crimes perpetrados por adolescentes não tinham o carácter de “normalidade” que ganharam hoje em dia.

O crime seria, mais tarde, contado pela jornalista e escritora Rebecca Godfrey, também ela originária de Victoria, no Canadá, no  livro Under The Bridge, de 2005, que foi um bestseller na altura. A obra ganhou agora a forma de série, através da Hulu (em Portugal pode ser vista na Disney+), protagonizada pela atriz Lily Gladstone, a primeira nativa americana nomeada para um Óscar, e Riley Keough, neta de Elvis Presley. A série, de oito episódios, que nos EUA se estreou em abril, foi uma das quatro mais vistas nos naquele país entre abril e maio. Êxito que não será alheio à febre que o género “true crime” tem atualmente entre as gerações mais jovens, nem ao facto de que o racismo continua a ser inquietantemente atual.

[o trailer de “Debaixo da Ponte”:]

Debaixo da Ponte honra esse género não-ficcional inaugurado nos anos 60 pelo jornalista e escritor Truman Capote, com o livro A Sangue Frio, um misto de reportagem, entrevista de campo, crónica e reflexão que deu origem ao movimento do New Journalism. Rebecca Godfrey assumia esta filiação e a autora da série, Quinn Shephard, utilizou no argumento a mesma confluência de linhas narrativas, onde o que importa não é quem cometeu o crime ou se vai ser apanhado, mas o desvendar da psique de uma comunidade, dos fantasmas que a habitam e de como estes sentimentos “não ditos” acabam por explodir de forma violenta.

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Tal como Capote passou seis anos em Holcomb, no Kansas, entrevistou os criminosos na cadeia, a família dos mortos e a vizinhança para escrever A Sangue Frio, Rebecca Godfrey voltou a Saanich, a cidade de onde ela própria era originária, para contar a história do assassinato de Reena Virk, confrontando-se, nessa viagem, com a própria adolescência, a morte do irmão com uma doença mental e tentando chegar à verdade driblando (e por vezes falhando) os seus próprios preconceitos, crenças, traumas. Assim, Debaixo da Ponte, é uma série com várias camadas narrativas, vários tempos, vários pontos de vista, fazendo com que, para todas estas mulheres envolvidas, esta seja não apenas a história de um crime, mas uma história de formação, de entrada inexorável na vida adulta, com um ato impossível de apagar.

Reena Virk e as amigas, Josephine, Kelly e Dusty, que sonhavam ser gangsters

Durante dois anos, Quinn Shephard trabalhou com a escritora Rebecca Godfrey na adaptação do livro e a opção de juntar a história de Rebecca à de Reena Virk (que não acontece no livro homónimo) foi de ambas, até porque Godfrey estava com uma doença terminal, da qual morreu em 2022, quando a série começou a ser rodada. O assassinato de Reena pelas suas colegas (na maioria raparigas) e a forma como a investigação de Rebecca ajudou a polícia a descobrir os criminosos entre um grupo de adolescentes aparentemente normais e até mesmo “cool”, são as duas grandes linhas narrativas da obra, que se ramificam depois na história de Camila, uma polícia de origem nativa, com um passado também ele marcado pelo sentimento de não pertença, na da família Virk, a única de origem indiana daquela comunidade, e na das três amigas de Reena, que seriam as principais implicadas na sua morte, Josephine, Kelly e Dusty.

No momento em que a emigração, o racismo e a polarização estão ao rubro na sociedade portuguesa, Debaixo da Ponte torna-se um objeto importante porque nos confronta com as formas de racismo que se disseminam, subtilmente, entre os mais jovens, os mais fracos socialmente e mentalmente, e se manifestam de formas invisíveis para os adultos, dentro dos rituais culturais dos adolescentes, dos seus “ritos de passagem”, na sua busca de reconhecimento, aceitação, mas também nas pequenas rivalidades e invejas quotidianas.

Reena Virk, não “apenas” mais uma rapariga morta

Uma rapariga morta, um cadáver semi-nú, indícios de um crime. O início tornou-se quase banal, quando todos os dias estreiam novas séries no streaming para um público ávido de true crime e o mote da rapariga morta se normalizou. Poucas chegam, no entanto, a fazer ressoar, não apenas os instintos criminosos de alguém, mas sim de toda uma comunidade. Mare Of Easttown, de 2021, com uma magnífica Kate Winslet, será porventura o ponto alto deste género e, perto dela, todas as séries sobre adolescentes que cometem crimes podem parecer bastante tépidas. Com Debaixo da Ponte, os críticos têm-se dividido e apenas Lily Gladstone, que veste a pele da policial indígena Camila, e Archie Panjab, que interpreta Suman Virk, a mãe de Reena, esmagada por nunca ter conseguido uma relação de cumplicidade com a filha, têm recebido aplausos. Em Portugal, esta série não pode de nos deixar de fazer pensar no caso de Gisberta, numa história onde não se podem traçar fronteiras claras entre vítimas e vilões, uma vez que o problema reside na desumanização das instituições, dos estados e das comunidades.

Riley Keough e Lily Gladstone são as protagonistas de "Debaixo da Ponte"

Também em Debaixo da Ponte várias das adolescentes envolvidas viviam numa instituição, por terem sido rejeitadas pelas respetivas famílias. Naquela pequena cidade canadiana, no final dos anos 90, todas as miúdas romantizavam o universo retratado no hip hop, com as suas histórias de gangsters, mafiosos, rebeldes e mulheres fatais. Josephine Bell (Jo) era uma adolescente manipuladora que se dizia líder de um gang e se rodeava de outras raparigas que a idolatravam e estavam dispostas a tudo para ter o seu reconhecimento. Uma delas era Reena Virk, cujo adoração se aproximava do desejo de ser igualmente loira, sexy e cool, ou seja de rejeitar o seu corpo, aceitando, por isso, todo o tipo de humilhações, orquestradas por Jo.

Num gesto de ousadia e provocação Reena Virk (Vritika Gupta) rouba a agenda de Josephine (Chloe Guidry) e telefona a todos os amigos desta  espalhando o boato de que esta teria sida. Na noite de 14 de novembro de 1997, Reena recebe um telefonema de Jo para irem juntas a uma festa, e combinam um encontro debaixo da Craigflower Bridge. Junto ao rio esperam-na Jo, mas também os seus factotums, Kelly (Izzy G.) e Dusty (Aiyana Goodfellow), mas também outras raparigas e alguns rapazes devidamente cooptados para “dar uma lição” a Reena, entre eles Warren Glowatski (Javon “Wanna” Walton, ator que conhecemos da série Euphoria). Esta “lição” consistiu no seu espancamento quase até à morte e queimaduras de cigarro no corpo, nomeadamente na testa, onde, tradicionalmente, as mulheres indianas usam a “bindi”. Não é aqui que acontece a sua morte e, quando uma semana depois o cadáver aparece a boiar nas aguas do rio Gorge Waterway, não será fácil encontrar os que lhe deram o golpe fatal.

Capa do jornal canadiano “Times Colonial”, de 1997, sobre a morte da adolescente, que deu origem à série da Hulu

O caso arrastou-se durante décadas nos tribunais canadianos e mudou definitivamente a vida de todos os adolescentes envolvidos na morte da adolescente de origem indiana. Na época, a polícia não considerou que o crime tivesse motivações racistas, pois entre os adolescentes ligados ao crime havia várias etnias, classes sociais, estatutos socio-económicos. A família de Reena era mesmo uma das que tinha melhores condições económicas. Hoje, a autora da série, Quinn Shephard, não tem dúvida que houve “motivações racistas” neste assassinato, como afirma em entrevista à revista Vulture, e, não ter percebido isso enfraqueceu a investigação policial, como se verá.

Os episódios são tensos, violentos, mas recriam com mestria o universo dos adolescentes, com todas as suas fragilidades, dúvidas, dificuldades de comunicação, mas também o seu desespero para encontrarem uns nos outros formas de identificação e afeto. A narrativa começa na noite do crime e segue estes sete jovens durante os vários anos que durou a investigação e o julgamento. Para lá do livro de Rebecca Godfrey, a argumentista recorreu ainda ao livro escrito por Manjit Virk, pai de Reena, que conta a vida breve da filha e a forma como foi alvo fácil para todos os tipos de bullying, desde a infância.

Não sendo um objeto artístico perfeito, Debaixo da Ponte não deixa de nos obrigar a refletir, não tanto (mas também) sobre o racismo, mas sobre a falta de compaixão das sociedades do progresso tecnológico e da abundância material.

 
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