“O maior serviço público que o senhor Biden pode fazer é anunciar que não vai continuar na corrida para ser reeleito.” É assim que o New York Times (NYT), um dos jornais de referência dos EUA, pede ao atual Presidente que desista de tentar a reeleição. Praticamente desde a fundação que o jornal escolhe um candidato para apoiar (segundo a Wikipédia, apoiou 28 vezes um candidato democrata e 13 vezes um republicano), tendo em outubro de 2020 tornado público o apoio a Joe Biden nas eleições contra Trump, num artigo de opinião intitulado “Elejam Joe Biden, América”.

Agora, a mensagem é outra. Notando que Donald Trump provou “ser um risco significativo para a democracia – uma figura errática e com interesses próprios não merecedora da confiança pública”, o conselho editorial do jornal considera que a vitória de 2020 “já não é razão suficiente para Biden dever ser o nomeado democrata este ano”.

O artigo de opinião, publicado por um órgão que é independente da redação do NYT e é composto por cronistas e outras figuras relevantes, realça que Biden “foi uma sombra de um grande servidor público” no debate contra Trump, transmitido pela CNN na quinta-feira. O jornal realça que foram notórias as dificuldades em responder “às provocações de Trump” ou mesmo “até chegar ao fim de uma frase”. “Não há razão para o partido arriscar a estabilidade e a segurança do país ao forçar os eleitores a escolher entre as deficiências de Trump ou as de Biden”, sublinha o NYT.

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A prestação de Biden no debate fez soar alarmes nos EUA, que ganham força com a publicação de outros dois artigos com a mesma mensagem no Wall Street Journal (WSJ) e no Washington Post. O WSJ também pede a Biden que “desista, em vez de tentar perceber como é que poderá salvar a candidatura”. Num editorial, o jornal considera que o atual Presidente “está a brincar com o fogo”. “Quase toda a gente no partido democrata era uma melhor aposta para derrotar Donald Trump uma segunda vez e o senhor Biden não era uma boa aposta para vencer quase nenhum republicano que pudesse ter conquistado a nomeação em vez de Trump.”

Já no Washington Post, onde o desempenho de Biden no debate é adjetivado de “calamitoso”, é reconhecido que uma saída de cena do atual candidato “não garante uma vitória ao partido em novembro“. Mas, caso Biden “passe de forma bem sucedida a tocha, poderá ser lembrado como um Cincinato do século XXI”, destacando o trabalho do atual Presidente no combate à Covid-19, no regresso da normalidade após a invasão do Capitólio ou no apoio à Ucrânia no contexto de guerra. “Se escolher ficar e perde este outono, arrisca-se a deixar um tipo de legado diferente (…).”

Fora dos EUA, também há meios de referência, como os britânicos The Economist e Financial Times a apelar a Biden para que abdique e permita escolher outro candidato. A revista The Economist lembra que, em novembro de 2022, já tinha dito que Biden não devia tentar a reeleição. Uma afirmação que repetiu este ano. “Em janeiro já pusemos as nossas preocupações numa capa”, é possível ler no editorial, publicado na sexta-feira. “Se o senhor Biden realmente se preocupa com a sua missão, então o seu último e maior serviço público devia ser sair de cena para deixar outro nomeado democrata” assumir a candidatura.

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No britânico Financial Times, é reconhecida a difícil reflexão que Biden poderá ter de fazer por estes dias. “Mas sair de cena agora seria uma decisão digna e de um estadista — e talvez até prove ser a melhor forma de conquistar o seu amplo objetivo político de preservar a democracia dos Estados Unidos”, remata o conselho editoral numa opinião publicada na sexta-feira.

Nos EUA e no Reino Unido, é habitual que as principais publicações anunciem um apoio nas presidenciais. Desde que Biden anunciou a intenção de se recandidatar que a decisão tem sido fortemente escrutinada, principalmente devido à idade. Joe Biden completará 82 anos a 20 de novembro, alguns dias após as presidenciais, que estão marcadas para 5 de novembro. O atual Presidente concorre contra Trump, ligeiramente mais “novo”, com 78 anos.

Partido democrata pode usar um processo complexo para substituir Biden

Nos últimos dias a imprensa e os analistas políticos norte-americanos têm debatido a hipótese de uma possível substituição de Joe Biden na corrida à Casa Branca. A acontecer seria um processo pouco usado e com regras relativamente vagas.

Uma das poucas certezas é que, a haver substituição, a iniciativa terá de partir de Joe Biden, explicou à Reuters Elaine Kamarck, investigadora do think tank Brookings Institution e membro do Comité Nacional Democrata (DNC) e autora de “Primary Politics”, um livro sobre o processo da nomeação presidencial.

Segundo a investigadora, não há realmente um plano B ou uma alternativa de candidato além de Biden, que até aqui não tem tido rivais dentro do partido. Mas há alguma margem, já que os democratas têm até 7 de agosto para fazer uma nomeação. Biden deve receber nomeação na convenção democrata de 19 a 22 de agosto, mas uma lei do Ohio requer que todos os candidatos sejam oficialmente nomeados até 7 de agosto – caso contrário, não aparecerão no boletim de voto nesse estado.

Joe Biden Accepts Party's Nomination For President In Delaware During Virtual DNC

Joe e Jill Biden em 2020, no Delaware, na convenção que ditou a nomeação do atual Presidente dos EUA como candidato democrata

Para ser substituído, Biden terá de concordar em abdicar ou enfrentar um concorrente. Mesmo após o débil desempenho no debate, o atual Presidente não sinalizou a intenção de desistir da candidatura.

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De acordo com Elaine Kamarck, há alguns cenários possíveis. Caso Biden desista, os quase quatro mil delegados democratas que até aqui lhe demonstraram apoio nas primárias ficariam “livres” para votar noutra pessoa. O Politico realça que uma demonstração de apoio não é sinónimo de obrigação legal de votar em Biden: caso exista outra pessoa, os delegados têm alguma liberdade para mudar a votação.

Uma alternativa a Biden teria de reunir as assinaturas de 600 delegados da convenção para ser nomeada, de um universo possível de 4.672 esperados este ano.

Na possibilidade de não existir uma pessoa que reúna a preferência da maioria dos delegados, teria de ser feita uma outra convenção, em que os delegados poderiam negociar com a liderança do partido o nome de um nomeado, explica a Reuters. Mas é um processo invulgar e que não é usado pelos democratas desde 1952.

No cenário de Biden desistir após a convenção democrata de agosto, já com a nomeação, caberia aos 435 membros do Comité Nacional Democrata escolher um novo candidato. Os membros teriam de reunir-se numa sessão especial. Este comité tem um número igual de homens e mulheres e contém pessoas de vários quadrantes da sociedade, incluindo líderes laborais, representantes da comunidade LGBTQ+ e minorias raciais, explica a imprensa norte-americana. Em 435 membros, apenas 75 são nomeados, os restantes são eleitos pelos respetivos estados.

Mesmo nessa hipótese, teriam de existir discursos de nomeação (feitos por membros que reunissem uma percentagem mínima de apoio a rondar os 60 delegados) e demonstrações de apoio às sugestões entre os democratas. A Reuters nota que poderiam surgir vários nomes de candidatos para uma lista que seria reduzida até ao candidato final.

Quem são os candidatos que poderiam substituir Joe Biden?

A decisão para desistir tem de partir de Biden e até agora não há sinais dessa vontade. Em reação às críticas após o debate, o Presidente admitiu que já não discute “tão bem como antes”, mas que sabe “distinguir o certo do errado” e que consegue “fazer o trabalho”. “Dou-vos a minha palavra que não voltaria a candidatar-me se não acreditasse de alma e coração que posso fazer este trabalho. Porque, francamente, os riscos são demasiado elevados”, declarou num comício na Carolina do Norte esta sexta-feira.

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Mas isso não impede a imprensa internacional de elaborar listas de possíveis candidatos a substituir Biden, em que a vice-Presidente ocupa os lugares cimeiros.

Kamala Harris

A figura número dois da administração Biden é uma forte probabilidade, notam meios como o Washington PostNew York Times, a BBC ou o Guardian. Aos 59 anos, tem sido criticada ao longo do mandato pelas dificuldades de se destacar num papel que é o de uma figura de apoio ao Presidente.

epa11228351 US Vice President Kamala Harris speaks during a Women's History Month reception in the East Room of the White House in Washington, DC, USA, 18 March 2024. The Biden administration is rolling out an executive order to strengthen women's health research standards across federal agencies and prioritize its funding in an effort to close the gap on long-standing disparities. EPA/AL DRAGO / POOL

Kamala Harris

Após o debate, defendeu veementemente o trabalho de Biden desde 2020 e atirou-se à conduta de Trump. “Num líder verdadeiro, o caráter importa mais que o estilo. Donald Trump simplesmente não tem o caráter para ser Presidente dos EUA”, cita o NYT.

Embora possa ser uma das escolhas que daria menos dores de cabeça aos democratas no processo de substituição, nota o Guardian, também tem algo a provar nas sondagens, em que tem tido dificuldade em ficar à frente da popularidade de Trump.

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Gavin Newsom

O segundo concorrente poderia ser Gavin Newsom, o governador do estado da Califórnia. O político de 56 anos também optou pela defesa de Biden, considerando que as teorias sobre a substituição “eram especulação sem sentido”.

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Gavin Newsom, governador da Califórnia

Tem-se tornado um rosto popular entre os democratas, com especial popularidade após o debate no ano passado contra Ron DeSantis, o governador da Flórida que até há bem pouco tempo era visto como um rival de Trump.

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Gretchen Whitmer

Outra hipótese em destaque é Gretchen Whitmer, a governadora do Michigan, um estado crucial para os democratas. O Washington Post escreve que a governadora é uma figura popular no estado, com uma taxa de aprovação entre 54 a 61%. Também destaca a experiência e o perfil de cariz de figura reconhecida a nível nacional.

epa08610232 A frame grab from a video feed made available by the Democratic National Convention (DNC) shows Michigan Governor Gretchen Whitmer speaking during the first night of the Democratic National Convention, held as an online event hosted from Milwaukee, Wisconsin, USA, 17 August 2020 (issued 18 August 2020). The 2020 Democratic National Convention will run from 17 August to 20 August. EPA/DEMOCRATIC NATIONAL CONVENTION HANDOUT HANDOUT EDITORIAL USE ONLY/NO SALES

Gretchen Whitmer é governadora do estado do Michigan

Pete Buttigieg

A imprensa norte-americana reconhece a capacidade de debate do atual secretário de Estado dos Transportes, uma competência necessária na batalha com Trump. É frequente vê-lo em confrontos com apresentadores da Fox News e republicanos durante as audições no Congresso, com algumas intervenções a tornarem-se populares entre os círculos dos democratas.

Mas há um senão: poderá não ter bons resultados junto de alguns eleitores, como a comunidade negra norte-americana. Em 2020, não reuniu o apoio destes eleitores, nota o Washington Post.

epa08885935 (FILE) - US presidential candidate Pete Buttigieg arrives to hold a town hall with voters at the Merrimack American Legion in Merrimack, New Hampshire, USA, 06 February 2020 (Reissued 15 December 2020). According to repors on 15 December 2020, Fromer Mayor of South Bend, Indiana, Pete Buttigieg is President-elect Joe Biden's pick for Secretary of Transportation. EPA/JUSTIN LANE *** Local Caption *** 55921221

Pete Buttigieg é o atual secretário dos Transportes

Josh Shapiro

Josh Shapiro também figura em algumas listas. O governador da Pensilvânia é descrito como uma “estrela em ascensão” entre os democratas. Tem ainda a particularidade de, segundo algumas sondagens, conseguir agradar a gregos e troianos.

Democratic Gubernatorial Candidate Josh Shapiro Holds Election Night Event

Josh Shapiro

Numa sondagem de maio, feita na Pensilvânia para o The Inquirer, New York Times e para a Sienna College, três em cada dez pessoas que diziam ter intenções de votar em Trump em novembro simpatizavam com Shapiro. Por partidos, 77% dos democratas, 42% dos republicanos e 39% de eleitores independentes tinham uma opinião positiva em relação ao trabalho do governador.

Michelle Obama

O Washington Post também inclui algumas figuras menos prováveis na lista, como Michelle Obama. “É a opção de fantasia para os democratas”, escreve o jornal. “Seria a alternativa ideal para muitos, mas também é improvável que concorra.”

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Michelle Obama

Michelle Obama continua a ser a ex-primeira-dama mais popular dos EUA, segundo uma sondagem da YouGov. Mas até aqui nunca demonstrou o interesse de fazer a própria campanha – fazê-lo a poucos meses das eleições seria ainda mais difícil.

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