Durante anos, guardou silêncio. Depois revelou o segredo à família, que o manteve fechado a sete chaves. Ainda foi à polícia, ainda houve uma condenação, mas a fama da mãe, Nobel da Literatura, escondeu a verdade incómoda. Agora, dois meses depois de a conhecida escritora canadiana morrer, aos 92 anos, Andrea Skinner resolveu contar tudo num texto no Toronto Star cujo título diz (quase) tudo: O meu padrasto abusou de mim sexualmente quando eu era criança. A minha mãe, Alice Munro, escolheu ficar com ele.

A filha mais nova de Alice Munro e as suas irmãs acreditam que esta história sombria da família também deve fazer parte do legado de Munro. E que chegou o momento para a revelar. “Nunca mais quis ver uma entrevista, uma biografia ou um acontecimento que não se debatesse com a realidade do que me tinha acontecido e com o facto de a minha mãe, confrontada com a verdade, ter optado por ficar e proteger o meu agressor”, disse Andrea numa entrevista ao Toronto Star.

Morreu a escritora canadiana Alice Munro, galardoada com o Nobel da Literatura em 2013. Tinha 92 anos

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Não foi a primeira vez que contou publicamente o seu drama. Em So let’s talkabout it (vamos lá então falar sobre isto, em tradução livre para português) Andrea, juntamente com a irmã Jenny, abordam o tema. O relato é feito num vídeo da Gatehouse, associação que apoia vítimas de abuso sexual, publicado em abril (ainda antes da morte de Alice Munro) com muitas imagens da infância de Andrea e momentos em família.

Mas nada teve a repercussão do testemunho escrito na primeira pessoa publicado no jornal canadiano no domingo.

Andrea arranca o artigo no Toronto Star sem rodeios: “Em 1976, fui visitar minha mãe, Alice Munro, para passar o verão na sua casa em Clinton, Ontário. Uma noite, enquanto ela estava fora, o meu padrasto [com 50 anos], Gerald Fremlin, subiu para a cama onde eu estava a dormir e abusou de mim sexualmente. Eu tinha nove anos. Era uma criança feliz — ativa e curiosa — que só agora tinha percebido que não podia crescer para ser um cão pastor de ovelhas, uma grande desilusão, pois adorava cães e ovelhas.”

O relato continua descrevendo que, na manhã seguinte, não conseguia levantar-se da cama. “Tinha acordado com a minha primeira enxaqueca, que com o passar dos anos se transformou numa doença crónica e debilitante que se mantém até hoje. Ansiava por regressar a casa, a Victoria, para estar com o meu pai, Jim Munro, a minha madrasta, Carole e o meu meio irmão Stephen”.

Mas ficou em Clinton, e sem nada dizer sobre o que se passara na véspera pois tinha medo da reação da mãe: “Ela tinha-me dito que Fremlin gostava mais de mim do que dela e eu pensei que ela me ia culpar se descobrisse”, escreveu. No último dia da sua visita, enquanto a levava ao aeroporto, o padrasto começou a pedir-lhe pormenores sobre a sua vida sexual e a partilhar aspetos da sua intimidade.

Mais tarde a criança acabou por contar tudo à madrasta, que falou com o pai, que achou melhor nada dizer a Alice na altura.

Andrea voltou a casa da mãe nos anos seguintes, apesar de a madrasta lhe dizer que poderia não o fazer. Mas “ela queria estar com a mãe” contou Carole ao Toronto Star.

E os abusos repetiram-se, com Fremlin a mostrar-lhe partes do corpo durante passeios de carro, a fazer-lhe propostas sexuais e a falar-lhe das “meninas da vizinhança de quem ele gostava” ou das necessidades sexuais da mãe. Até que Andrea chegou à adolescência e o padrasto perdeu o interesse nela.

A jovem continuou em silêncio, até que na universidade se começou a debater com problemas de saúde mental e física. E finalmente, em 1992, já com 25 anos, Andrea decidiu escrever à mãe, depois de Munro, mestre aclamada do conto, ter manifestado empatia por uma personagem de uma história que fora abusada sexualmente pelo padrasto. Alice reagiu como se tivesse tido conhecimento de uma infidelidade do marido.

Fremlin escreveu igualmente cartas à família na época, onde admitiu o abuso mas culpando a enteada — “A Andrea invadiu o meu quarto à procura de aventuras sexuais” — e propondo-se mostrar fotos que o provavam como uma da criança com os seus boxers vestidos no seu escritório.

Alice ainda se separou alguns meses do marido mas acabou por voltar, ficando com ele até à sua morte, em 2013, o mesmo ano em que a autora recebeu o Nobel da Literatura. “Disse-me  que se eu esperava que ela negasse as suas próprias necessidades, se sacrificasse pelos seus filhos e compensasse as falhas dos homens, então a nossa cultura misógina era a culpada“, escreveu Andrea Skinner no testemunho divulgado pelo Toronto Star.

“Ela estava convencida de que o que quer que tivesse acontecido era entre mim e o meu padrasto. Não tinha nada a ver com ela”, relata Andrea, acrescentando que a mãe argumentou ainda que tinha sabido dos abusos demasiado tarde e que o amava demasiado para o deixar.

“Fiquei impressionada por ela se sentir ofendida. Acreditava que o meu pai nos tinha obrigado a guardar o segredo para a humilhar. Depois falou-me de outras crianças com quem Fremlin tinha ‘amizades’, sublinhando a sua própria sensação de que ela, pessoalmente, tinha sido traída. Terá ela percebido que estava a falar com uma vítima e que eu era sua filha? Se tinha, eu não o sentia”, lamentou Andrea, que se afastou da família em 2002 depois de dizer a Alice que não queria Fremlin perto dos seus filhos.

Finalmente, em 2005, cerca de 30 anos depois dos abusos, e após uma entrevista em que a mãe elogiava o marido, Andrea denunciou os abusos de que fora vítima à polícia local tendo apresentado as cartas que o padrasto escreveu como provas. Aos 80 anos, Fremlin foi acusado de atentado ao pudor, confessou-se culpado e foi condenado a dois anos de pena suspensa. 

Ainda assim, o caso não caiu no conhecimento público devido à fama da escritora, mundialmente conhecida pelos seus contos, diz a filha. Até ao fim de semana passado, deixando o mundo literário em choque, como a não menos famosa escritora canadiana Margaret Atwood e os leitores de Munro a criticá-la nas redes sociais e em artigos de opinião, refere o Toronto Star. 

Entretanto a Munro’s Books, livraria fundada por Alice e Jim Munro e que é agora propriedade de pessoas que nada têm a ver com a família, divulgou uma declaração em que “apoia inequivocamente” a decisão de Andrea Robin Skinner de contar a sua história publicamente.

A família Munro (Andrea reconciliou-se com as duas irmãs mas nunca com a mãe) agradeceu o gesto da livraria emitindo também um comunicado. A decisão de reconhecer “a verdade de Andrea e ser muito clara sobre o seu desejo de acabar com o legado de silêncio fez com que os atuais proprietários da livraria se tornassem parte da cura” da família.

Quem não está a sair ileso desta história é o biógrafo de Munro, que apesar de ter conhecimento dos abusos, nada escreveu, como admitiu ao jornal canadiano The Globe and Mail. Disse tratar-se de uma “discórdia familiar” que não ia melhorar em nada o texto previsto.