O espetáculo devia estar pronto, mas “o Tiago sempre se atrasou a entregar os textos”, diz-nos o único ator em palco. Em Entrelinhas, monólogo que o encenador e dramaturgo Tiago Rodrigues escreveu para Tónan Quito, um ator enfrenta o público para explicar por que motivo não conseguiu construir o espetáculo que estava prometido. A peça, que desafia os limites entre a realidade e a ficção, mostra-se de 13 a 16 de julho no salão de festas do Incrível Almadense, no âmbito do Festival de Almada, naquela cidade.
Ironicamente, o espetáculo, que se estreou há mais de uma década, regressa aos palcos em virtude do cancelamento de um outro. Por “motivos de força maior”, o monólogo de Nuno Cardoso Homens Hediondos, com texto de David Foster Wallace, e encenação de Patrícia Portela, foi adiado, e o Festival de Almada recorreu a Entrelinhas para o substituir no certame.
“Houve um espetáculo que falhou e veio um espetáculo falhado. A curadoria foi muito bem feita nesse sentido”, graceja Tónan Quito, intérprete a quem cabe a tarefa de conduzir o público ao longo de uma hora. “O monólogo é sempre uma coisa de sobrevivência, estar ali em frente às pessoas”.
Enquanto criador, Entrelinhas “sai um bocadinho fora do baralho”, admite Quito ao Observador sobre a peça que “entra naquela zona das peças excepcionais” do percurso desta prolífica figura do teatro português.
A peça era suposto ser um monólogo a partir de Rei Édipo, mas o encenador atrasa-se a entregar o texto e, a dada altura, fica com problemas de visão que o impedem de terminar. Depois, tudo fica nas mãos do ator, que vai ter de criar o espetáculo. É dessa tentativa falhada que nasce um texto que mistura o de Sófocles (na tradução de António Manuel Couto Viana) com as cartas de um preso para a sua mãe (que o ator encontra no interior de um livro em casa dos pais), atravessando a relação entre autor e ator — aliás, o espetáculo é uma co-criação de Tiago Rodrigues e Tónan Quito. Os textos confundem-se, as fronteiras entre realidade e ficção esbatem-se e, entre páginas, questiona-se o próprio processo de criação. Será que quem cria é apenas quem escreve?
Entrelinhas estreou-se em fevereiro de 2013 no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa. Desde então, foi apresentado fora de Portugal, sobretudo em francês e inglês. “Hoje tenho muito mais propriedade sobre aquilo que conto, sobre as memórias. Já lhes dou outro tipo de densidade, têm outro tipo de eco”, diz Tónan Quito sobre a redescoberta do espetáculo, sublinhado que continua “a descobrir coisas no texto e maneiras de fazer diferentes.” Com o distanciamento temporal, considera que a peça se revela mais como “uma história de amizade entre duas pessoas, o ator e o autor”. No caso, Tónan Quito e Tiago Rodrigues. Mais de uma década depois da estreia, “continua a resumir bem as angústias de um autor e de um ator”. E a mostrar que o erro, na criação artística, é mais do que uma possibilidade, é uma inevitabilidade do processo.
Depois de Almada, onde todas as récitas esgotaram pouco dias depois da abertura das bilheteiras do Festival de Almada, Entrelinhas volta em novembro com apresentações no Teatro Sá da Bandeira, em Santarém, dia 8, e no Teatro Stephens, na Marinha Grande, no dia 16.
Incrível Almadense — Salão de Festas (Almada). 13 a 16 de julho, sábado e domingo, às 15h, segunda-feira, às 21h30, terça-feira, às 19h. Bilhetes €13. Espetáculo esgotado.