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ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Tónan Quito: "Porque é que o teatro deixa de ser importante no desenvolvimento de um adolescente ou de um adulto?"

Em "A vida vai engolir-vos", leva Tchekhov e as suas quatro peças principais ao São Luiz e ao D. Maria II. Em entrevista, o ator encenador apresenta o espectáculo e apresenta-se a ele próprio.

Em tempos, na Sala Luís Miguel Cintra do Teatro São Luiz, em Lisboa, Miguel Loureiro disse a Tónan Quito: “Um dia fazemos as peças todas do Tchekhov numa noite inteira”. Bem dito, bem feito. Dois dias depois da provocação do amigo, encenador e ator — que também faz parte deste elenco, pois claro — Tónan Quito decidiu que havia de acontecer.

A vida vai engolir-vos é uma espécie de aglutinação, miscelânea, ovos mexidos de Tchekhov. Agarrou em A Gaivota, O GinjalO Tio Vânia e Três Irmãs e levou ao lume. Ou deitou na frigideira. Está longe de ser uma utilização convencional, um Tchekhov sobre o comprido. Pelo contrário, é precisamente o confronto, a mistura dos enredos — ao ponto de já não existirem personagens — que faz ressoar, de forma raramente vista, as ânsias do autor russo. Dividido em duas partes e, alternadamente, entre o D. Maria II e o São Luiz ­— de 1 a 12 de Setembro e com direito a duas maratonas: a 5 e a 12 as duas partes decorrem na mesma noite, das 19h às 06h, com jantar e uma mudança de teatro pelo meio — este projeto é, muito provavelmente, a maior empreitada em que o ator que cresceu em Carnaxide se meteu.

Tudo o que atrás foi descrito é, antes de mais, um ponto de partida para uma conversa mais prolongada com este elemento prolífico do teatro português. Aprendermos que Tónan vem da junção de António e Fernando, os seus nomes próprios, e que Quito é apelido; que começou no teatro pela mão de António Fonseca, num grupo de teatro de escola com um nome memorável: 4º Período — o do Prazer; que daí saltou para o Teatro da Cornucópia onde se estreou profissionalmente; que o fascínio da cena talvez tenha vindo dos tempos livres que passava nos ensaios do pai, músico no Teatro São Carlos. Aprender isto tudo. E reforçar a ideia já estabelecida que Tónan Quito é um sujeito impecável, com quem se conversa lindamente, mesmo que seja no barulhento Largo do Carmo.

"Escreveu peças e contos absolutamente fantásticos, que nos fazem pensar um bocadinho na nossa vida e na maneira como vivemos"

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

O que é que o Tchekhov lhe fez?
Escreveu peças e contos absolutamente fantásticos, que nos fazem pensar um bocadinho na nossa vida e na maneira como vivemos, o grande grau de insatisfação que temos perante as decisões ou não que tomamos. O que é interessante nestas peças é que estão afastadas, acontecem numas propriedades rurais no interior da Rússia, entre os que já lá estão e outros que vêm de Moscovo ou de outras cidades.

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Da metrópole.
Precisamente. E há sempre dois tempos, o passado-presente e o futuro, são personagens que estão presas ao passado e às decisões que tomaram e que não tomaram. De repente, quando as peças os apanham, eles estão numa profunda insatisfação.

E isso agrada-lhe.
Sim, com amores mal resolvidos…

…filhos que morreram.
Exato, em quase todas as peças morreu o filho a alguém. Há sempre morte escondida e também explícita. O Treplev [A Gaivota] suicida-se no final da peça, o Tio Vânia está ali numa zona de angústia, não sabemos se daqui por mais um ano não vai dar um tiro na cabeça. Há uma pistola escondida na cave, em todas as peças há uma pistola. Há essa iminência.

De onde vem a vontade de fazer tudo de uma vez só? Já tinha encenado o Ivanov, também de Tchekhov, em 2010.
Sim, foi a minha primeira encenação, com a Truta. De facto, desde que fiz o Ivanov que fiquei a pensar nestas peças. Mas havia outras que me apeteciam fazer. Fiz Um Inimigo do Povo, o Ricardo III e a Casimiro e Carolina.

Portanto: Ibsen, Shakespeare e Horváth.
Exato. E estávamos a fazer Um Inimigo do Povo quando a ideia surgiu muito impulsivamente. Jantávamos em cena antes do público entrar e o Miguel Loureiro levanta-se e diz assim: “Um dia fazemos as peças todas do Tchekhov numa noite inteira”. Ficámos ali e rimo-nos. Um dia ou dois depois vou ter com ele — não sei bem como é que é a história, mas gosto de contar assim que é sempre uma boa história — e pergunto: “Olha, aquilo do Tchekhov estavas a brincar ou a falar a sério?”. E ele disse: “Ah, não, estava a brincar”. Ao que eu respondo: “Pronto, mas eu estava a falar a sério, o que é que tu achas de fazermos de uma assentada?”. E pronto. São peças que têm uma estrutura muito idêntica: um primeiro ato de apresentação, no segundo começamos a perceber o conflito, no terceiro instala-se a crise e no quarto as pessoas vão-se embora. A Gaivota é a única que tem uma estrutura diferente, o conflito fica logo muito evidente no primeiro ato. Mas, no fundo, agradava-me perceber o que é que se passava na cabeça deste escritor que ali em meia dúzia de anos escreve estas quatro peças e perceber quais são as semelhanças e as diferenças. Obviamente que esta coisa de ser um acontecimento e de fazer as quatro seguidas tem um novo fluxo e tem um fôlego diferente. Um desafio interessante.

"Há beijos, há toque, há falar perto. Há vontade, mas não há conforto para isso, é um grande risco, basta um de nós no final desta semana dar positivo e já não há estreia para ninguém. Isso condiciona-nos. Foi estranho este mês e meio de ensaios"

Se é para fazer que seja a sério. É um acontecimento, de facto, e logo num momento tão difícil para todos como é este que agora vivemos. Este espectáculo tem dois teatros, dos mais importantes de Lisboa, como co-produtores. Como é que se sente em relação a isto, há condições para fazer algo desta envergadura?
Sempre achei que isto era uma estupidez, um grande esforço hercúleo. Obviamente que foi muito bom os dois teatros, tal como os dois do Porto: o Rivoli e o São João quererem-se juntar ao projeto, e só assim é que estavam reunidas as condições para se poder fazer isto. Apesar disso, estamos longe das condições financeiras ideais para fazer isto, mas mesmo longe, estamos a trabalhar com os mínimos olímpicos e esta pandemia veio piorar tudo. Íamos ensaiar seis meses, o que já em si não era muito tempo e pronto, achava que era possível. E agora acaba por ser um bocado o espectáculo que é possível fazer, tendo em conta que estivemos dois meses e meio em casa, ou seja, não dá para muito mais do que decorar texto, perceber o que vai ser o cenário e os figurinos.

Supor, no fundo.
Pois. É uma grande corrida contra o tempo. Obviamente que desde que os teatros reabriram que estamos no palco e isso ajuda bastante. E pronto, temos realmente os teatros a apoiarem-nos com a logística toda que é necessária para fazer isto. Não ter tido o apoio da DGArtes obrigou-me a fazer muito mais cortes a nível de equipa e de tudo. Estamos a trabalhar no limite, não dá para inventar muito, nem fazer grandes cenografias. O principal para mim são sempre as pessoas, garantir um ordenado digno para cada um. Neste momento estamos a lidar com este problema da máscara, quando é que a vamos poder tirar, quando é que vamos ter esse conforto. Estamos em contacto com os teatros para perceber a questão das testagens e do que se vai fazer.

Para conseguirem ensaiar de forma mais livre e completa.
Pois, porque é complicado, há beijos, há toque, há falar perto. Há vontade, mas não há conforto para isso, é um grande risco, basta um de nós no final desta semana dar positivo e já não há estreia para ninguém. Isso condiciona-nos. Foi estranho este mês e meio de ensaios.

Esta ideia de trabalhar com os textos de forma praticamente integral e de, neste caso, até se fazer uma maratona que dura das 19h às 06h, lembra-me a Oresteia, que fez no CCB e que também era bastante grande. Tem algum afeto particular por estes formatos?
Não sei. Se calhar é uma coisa que tenho, sei lá, sempre me habituei a ver peças grandes, estreei-me na Cornucópia, o meu pai era músico no São Carlos e, portanto, vi sempre muitas óperas. Sim, agrada-me a ideia de prolongamento, de entrar numa sala e deixar instalar-se uma suspensão, o tempo de uma sala de teatro é diferente do tempo da vida. Quando surgiu a questão de se fazer durante a noite e o facto de o terceiro ato das Três Irmãs decorrer às duas da manhã, durante o incêndio, há coisas nestas peças muito noturnas, num tempo em que as crises se agudizam, achei que fazia todo o sentido trazer o público para o teatro à noite. O que será esta latência de ficarmos à noite todos juntos.

O que será quando o público sair.
Exato. Já saímos de dia. É sempre a promessa de alguma coisa nova que pode acontecer.

E isso num momento do mundo em que cada vez mais as pessoas querem consumir produtos de digestão rápida e que não lhes tomem muito tempo.
Sem dúvida e isso agrada-me bastante. Ou seja: não vamos facilitar. Acho que os meus espectáculos têm sempre um ritmo rápido e aqui não temos tanta preocupação com isso, é mais uma questão de estar e qual o tempo do estar e não o tempo ou o ritmo da peça. Não haver problemas com a cena estar a cair.

"Tchekhov ainda faz sentido hoje, por isso é que podemos continuar a fazer o Ricardo III e a falar de usurpações de poder porque elas existem noutras configurações"

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Se cair caiu.
Isso mesmo, é isso que o Tchekhov faz, vamos colocar estas personagens no mesmo espaço e tempo e agora vamos ver o que acontece. Gosto dessa ideia. Era preciso tempo para contar isto e não me apetecia fazer grandes cortes, apetecia-me estar.

E está lá tudo?
Cortei dois personagens, portanto muito pouco texto. Eram personagens importantes, mas pequenas e teve de ser assim, cada um de nós já faz quatro personagens, alguns cinco e já dobramos personagens dentro da peça e achei que isso já era demais.

Há aqui sempre — está explícito na sinopse — esta coisa de como vai ser a humanidade daqui a 200 ou 300 anos. Não acha que no tempo de vida do Tchekhov essa ideia de futuro era mais premente porque se sabia menos, porque se podia imaginar de outra forma?
É sempre diferente. Não se sabia tanto, mas havia o desejo de saber e o desejo da transformação. No início de 1800 tinha existido uma revolução, tinha-se conquistado a libertação dos escravos, o avô do Tchekhov comprou a liberdade da família. Parece que não, mas durante a vida do Tchekhov aconteceu muita coisa.

Não imaginou foi tantos robôs.
Pois, talvez não. Mas acho que o tempo dele é sempre o tempo da inquietação, do isto vai ser melhor e o Lopakhin [em O Ginjal] diz: “Agora toca a construir casas de campo e os nossos netos e bisnetos vão ter aqui uma vida nova”. Portanto, apesar de tudo, o tempo é igual, queremos continuar a pressentir uma vida nova, que se calhar o meu pai pressentiu para mim e para os meus irmãos quando veio da terra, do Alentejo, aos 18 anos, e se calhar também não sabia nada. O tempo é igual, o tempo é o tempo e aquilo que evolui é a humanidade.

As ânsias são as mesmas?
Sem dúvida, por isso é que Tchekhov ainda faz sentido hoje, por isso é que podemos continuar a fazer o Ricardo III e a falar de usurpações de poder porque elas existem noutras configurações. Estamos a assistir ao crescendo do Chega e não sei o que vai ser daqui a quatro anos.

Ou até nas Presidenciais.
Exatamente. É sempre o amor, o desespero, insatisfação são elementos que estão constantemente nas peças desde a Grécia.

Quando fez a Oresteia por certo mergulhou na Antiguidade Clássica. As ânsias desse tempo também são comparáveis às ânsias de Tchekhov e às suas?
Naquele tempo era diferente. Apesar de existir a democracia ateniense, existiam escravos, só os homens é que assistiam ao teatro, as mulheres não. Os escravos podiam ir, mas ficavam muito em cima e as mulheres, quando começaram a poder ir, a mesma coisa. Aquilo que é engraçado nas tragédias e nas comédias gregas é que aquilo acontecia uma vez por ano e, portanto, era mesmo um grande acontecimento. E os gregos iam ver aquilo que já conheciam: os seus deuses e reis. Iam ver essa luta do poder terreno com o poder divino, nessa medida quase que se assemelha, mal comparado, com teatro popular e isso acho engraçado. Eram coisas referentes àquele tempo.

Entretanto isso deixou de acontecer.
Continuamos a refletir sobre o nosso tempo.

Mas perdeu-se essa noção de acontecimento em que a cidade toda para e se desloca ao teatro.
Sim, isso não existe há muito tempo. Antes ia-se ao Parque Mayer ou ao Nacional ou assim, mas a questão do público perdeu-se. Tem de se fazer um trabalho muito grande de enraizamento. Porque é que estamos até ao nono ano ou à quarta classe a fazer peças da escola e depois corta para “não é importante”? Se se incentiva isso às crianças é porque é importante ao seu desenvolvimento e porque é que o teatro deixa de ser importante no desenvolvimento de um adolescente ou de um adulto?

Porque é que se opta por outras coisas?
Esse corte não me faz sentido.

"A minha grande introdução à cena foi ir aos ensaios do meu pai no São Carlos quando não tinha onde ficar, foi um bocadinho jardim-escola."

Dizia que o seu pai veio do Alentejo. Posso perguntar de onde?
São Miguel de Machede, uma aldeia junto a Évora.

Vem para Lisboa à procura de uma vida melhor?
É. Vem para a tropa, depois entrou na banda do exército e depois seguiu a carreira profissional como músico. Depois mais tarde tirou o conservatório. E pronto, a minha grande introdução à cena foi ir aos ensaios do meu pai no São Carlos quando não tinha onde ficar, foi um bocadinho jardim-escola.

Babysitting na primeira fila do São Carlos.
Era, a brincar com carrinhos de um lado para o outro.

Terá tido algum impacto, certo?
Pois, acho que sim, via muitas óperas e bailados e era fascinante para uma criança.

Que instrumento tocava ele?
Oboé.

E o Tonán toca alguma coisa?
Nada. Bom, tive quatro anos de piano e dois de guitarra, mas nada mais.

Foi para outra arte.
Exato, mas deduzo que tenha vindo daí, de ter visto. Eu no 9º ano inscrevo-me logo em teatro e o meu professor era o António Fonseca.

Exatamente. Vi que esse núcleo onde se iniciou tinha um nome peculiar: 4º Período — o do Prazer.
Nem mais. Isto foi na Escola Camilo Castelo Branco, em Carnaxide.

Onde cresceu.
Sim. O Fonseca dava lá aulas. No final do 8º ano, que foi um ano bastante terrível para mim, como acho que é para muita gente

Porquê?
É aquela coisa que nem é carne nem peixe. Saio do 6º ano que era uma coisa confortável, tenho um grupo de amigos, a mesma turma. Depois mudar da escola básica para a preparatória, primeiro grande choque, de repente já me dou com malta de 17 ou 18 anos, já é tudo diferente.

Abre-se a imagem, não é?
Abre-se um bocadinho. Depois o 8º foi mais complicado sim. No 9º não sabia bem o que havia de fazer, depois os meus pais lá me deixaram ir para o teatro, do género “deixa-o lá ir experimentar”. E pronto, essa turma de teatro era de uma opcional que existia na altura, havia saúde e mais não sei o quê e eu fui para teatro. Depois disso, o Fonseca fala comigo e com mais três ou quatro porque quer fundar um grupo de teatro da escola, que era esse 4º Período — o do Prazer, dividiu as pessoas em grupos, produção, cenários, por aí e montámos o Romeu e Julieta. Era uma peça por ano, no fundo. No 12º acho que tentei entrar numa coisa assim acho que Geografia ou uma merda dessas, não tinha média para mais. E não entrei. Candidatei-me ao Conservatório e também não entrei. E na altura já estava na Cornucópia a trabalhar, porque a penúltima peça do 4º Período foi O Dia de Marte, do Edward Bond. O Luís Miguel [Cintra] convidou o Fonseca porque sabia que ele tinha um grupo na escola, se ele não queria fazer lá, porque o Edward Bond tinha uma peça de adolescentes chamada Tuesday. E lá fomos nós, todos contentes. Entretanto, o Luís Miguel tinha-nos convidado, a mim e a mais três do grupo de Carnaxide — eu, a Rita Durão, o Fernando Ribeiro [cenógrafo de A vida vai engolir-vos] e a Cláudia Andrade —, para entrarmos n’O Triunfo do Inverno [Gil Vicente]. E a partir daí fazia uma peça na Cornucópia uma vez por ano, mais ou menos. O Luís Miguel continuou a convidar-me e a Rita Durão ainda ficou lá muito mais tempo.

"Cheguei a fazer publicidade numa faculdade privada, mas a meio do segundo ano aquilo já não estava a dar com nada e é quando faço novamente as provas no Conservatório consigo entrar"

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Tinha noção do que era o Teatro da Cornucópia nessa altura?
Nenhuma. O Luís Miguel era o patrão do António. Só um dia é que acho que pensei: “Este gajo é capaz de ser um bocado importante”. Mas como eles trabalhavam de forma descontraída e toda a gente opinava e estava a ver os cenários a serem construídos lá e coisas assim, sentia-me bem. Era mais ou menos o mesmo espírito que tínhamos em Carnaxide, mas mais a sério.

E não entrou no Conservatório.
Pois, e depois tive a fazer melhorias de nota no 12º, os meus pais não acharam bem, achavam que devia ter ido para uma área mais segura. Cheguei a fazer publicidade numa faculdade privada, mas a meio do segundo ano aquilo já não estava a dar com nada e é quando faço novamente as provas no Conservatório consigo entrar.

Como é que descreveria a adolescência ou crescimento em Carnaxide?
Era um sítio tranquilo. E esse grupo de amigos do 4º Período era incrível, apoiávamo-nos imenso, até os meus pais, apesar de não quererem que eu fosse para teatro, sobretudo naquela ótica de que o meu pai sabia o que eu ia sofrer e queria tentar safar-me disso.

É engraçado como não se quer para os filhos aquilo se teve.
É, não queremos. Eles não queriam que sofresse aquilo que eles sofreram, a inconstância, as pessoas que falam mal umas das outras.

Nada mudou.
Mas sim, tive um crescimento super feliz.

Que livros é que leu nesses tempos?
As minhas leituras e os meus filmes começaram aos 19 anos, até lá era rua, regabofe, curtir. Era isso. E depois lá me atirei à coisa. Assim a primeira coisa que me bateu imenso foi Os Miseráveis, do Victor Hugo, depois Os Irmãos Karamazov e O Idiota [Dostoiévski], li muitos russos nessa altura. E lia muito pouco teatro ou sobre teatro. E os filmes era tudo o que aparecia no King e no Quarteto, eram quase todos os domingos à noite.

Acha que quando se escolhe a arte meio que se invalida essa zona de regabofe e de curtição de que o Tónan falava?
Não, é possível fazer as duas coisas, eu quando ia para o regabofe depois também passava noites a ler. Não é impossível de conciliar. Depois quando comecei a trabalhar mais é que percebi que não dava, se calhar para algumas pessoas dá, eu é que não aguentava ou não me sentia bem e começava a aproveitar o tempo de outra maneira.

Mas a pesquisa nunca para.
Sim, é preciso estar sempre a pesquisar, a ler, ou a investigar sobre os autores.

Há tempo para o hedonismo?
Claro, sempre houve.

E o Tonán preza isso?
Obviamente. O nome que o Fonseca deu àquele grupo, 4º Período — o do Prazer acabou, para mim, a ser um modo de vida. Para mim fazer teatro tem de ser um prazer, tenho que gostar de acordar de manhã para ir olhar para aquelas pessoas, dar-me gozo, estarmos ali a falar e se calhar irmos jantar e beber um copo. Agora já é de outra maneira, mas também já tenho um filho e a gestão do tempo é outra. Tudo para mim sempre se confundiu, o facto de ser trabalho ou gozo ou uma maneira de estar com os amigos.

Estreia-se profissionalmente na Cornucópia?
Sim, em 1994, no dia em que fiz 18 anos, dia 10 de Dezembro.

Depois foi para o regabofe?
Devo ter ido, é possível, não me lembro bem.

"Como não sou um encenador convencional, até costumo dizer que não enceno, eu dirijo, tenho uma ideia, tenho duas ou três questões que queriam uma direção e a partir daí vamos montando."

É um dos co-fundadores da Truta, em 2003. Aconteceu como é habitual, isto é, um colegas de turma do Conservatório com afinidades estéticas e amizade?
Sim, precisamente. No último ano tínhamos que fazer um trabalho final, então eu, a Paula Diogo, a Rita Durão, o Rúben Tiago, o Raúl Oliveira, o Joaquim Horta juntámo-nos para fazer uma peça e depois fundámos a Truta, como referência ao quinteto do Schubert, que estava na nossa primeira peça, do Thomas Bernhard. E depois continuámos a partir daí.

Fizeram várias coisas, mas as pessoas foram sempre fazendo as suas coisas. Ao ponto de, em 2015, em conjunto com a Patrícia Costa ter fundado a HomemBala. Porquê nessa altura?
Ia fazer Um Inimigo do Povo.

E, portanto, precisava de uma estrutura formal que respondesse à burocracia maravilhosa deste país.
Basicamente foi isso. Para poder fazer contratações, para poder candidatar-me a apoios públicos, essas coisas. Nessa altura saio da Truta porque havia uma série de peças que queria fazer, porque na Truta funcionávamos como um grupo, que peças queremos fazer? E pronto, não sendo pela Truta fundei esta estrutura. Mesmo durante a Truta fomos sempre tendo outros trabalhos e sempre me agradou trabalhar com outras pessoas como ator.

Mas depois basicamente o que acontece é que o Tónan e um grupo de pessoas que dirige e que o dirigem formam como que uma companhia informal que não existe, mas que se poderá dizer que é uma companhia de afetos.
Sim, isto tem tudo que ver com afetos. Sempre trabalhei com pessoas que me eram próximas e já na Cornucópia isso existia, os afetos. Para mim, como é uma questão de gozo, obviamente trabalho com pessoas de quem gosto e que admiro e também pessoas que não conhecendo assim tão bem gostava de conhecer e trabalhar. Acaba por ser uma grande misturada.

Nesse aspeto, neste espectáculo tem três atores com quem nunca tinha trabalhado, certo? A Rita Cabaço, a Leonor Cabral e o João Pedro Mamede.
São pessoas com quem nunca tinha trabalhado e que quis convocar. Acresce o facto de gostar de trabalhar com pessoas que também são criadoras, isso está lá desde sempre.

É importante ter esse núcleo que o agite?
Sim, que me questione. Como não sou um encenador convencional, até costumo dizer que não enceno, eu dirijo, tenho uma ideia, tenho duas ou três questões que queriam uma direção e a partir daí vamos montando.

Diz que não encena porque nunca está de fora?
Não. Apenas porque não me vejo nessa figura, começo a encenar quando tenho 30 anos e todo o meu historial era como ator. Quando comecei a dirigir aqueles atores todos que adorava, o Pedro Lacerda, o João Pedro Vaz, o António Fonseca, a Sílvia Filipe, a Carla Galvão, foi do género: “A gente vai-se ajudar aqui um bocadinho”. Da mesma maneira como trabalho com o Daniel [Daniel Worm], com o Fernando [Ribeiro] ou com o [José António] Tenente. Qualquer um deles pode dizer “epá, não achas que esta cena podia ser assim?” ou “não achas que aquele ator podia fazer de outra maneira?”. Agrada-me que o espectáculo seja um conjunto, do conjunto, mesmo que tenha falhas. Falhas no sentido de “isto não tem lógica”.

A lógica morreu.
Sim, procuro coisas absurdas nos espectáculos, portanto quanto mais gente chamar para trabalhar mais vou aprendendo.

Não equaciona encenar sem entrar como ator?
Não. Isso aconteceu uma vez, no Anatol [Arthur Schnitzler], e não gostei nada, absolutamente nada.

Porque queria estar lá?
Sim, queria estar lá, queria fazer parte do jogo. Do género: gosto tanto deles, que oportunidade perdida. Mas o que é certo é que não tinha mesmo lugar e estava com medo do trabalho, era muito trabalho porque eram papéis grandes.

E então na estreia estava na régie. Triste.
Sim, estive na régie e depois foi estranho, estava muito calmo, não sentia nada, ao início ainda estava muito nervoso por eles, mas depois quando se está de fora não se pode fazer nada, durante aquelas duas horas não há nada ao nosso alcance.

E o Tonán não gosta de não poder fazer nada.
Nem mais. Deixa-me ir lá entregar uma carta.

Aquele tipo da produção que vai entregar o envelope do Óscar para Melhor Filme.
Completamente. E quem ficou com esse papel foi o Daniel Worm, que fez de criado e fazia muito bem, foi muito engraçado.

"O meu pai é alentejano e no Alentejo há diminutivos para toda a gente. E pronto, sou Tónan desde que nasci. O meu irmão é Armando André e é o Mandé. O meu irmão gémeo"

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Imagino que tenha sido.
Aliás, eu estou sempre a ver quando é que consigo meter a equipa toda em cena. Mas eles cortam-se todos. Ainda quero fazer, estou sempre a ver se é desta, mas nunca querem.

Sempre foi chamado por Tónan?
Sempre.

Mas vem de António, correto?
De António Fernando.

De facto, é uma maneira criativa de fugir a António, que é um nome bastante comum.
O meu pai é alentejano e no Alentejo há diminutivos para toda a gente. E pronto, sou Tónan desde que nasci. O meu irmão é Armando André e é o Mandé. O meu irmão gémeo.

Tem um irmão gémeo?
Tenho.

São muito parecidos?
Nada parecidos. Mesmo nada.

Pena. Podia dar-se o caso de — se ficasse doente — ele substituí-lo em palco.
Infelizmente, não tenho essa sorte. E Tónan tornou-se nome artístico, uma vez em que o António Fonseca me liga a dizer que estavam a fazer a ficha técnica e que tinha posto o meu nome como Tónan Quito, se eu achava bem. E eu disse que era muito mau, mesmo à artista de circo, é muita fora, não soa bem. Depois diz-me que já não tinha hipóteses que já tinha seguido para a gráfica. E depois n’Os Sete Infantes, na Cornucópia, o Luís Miguel [Cintra] pergunta-me se quero mudar e eu disse que não, que tinha sido o António Fonseca a dar-me o nome e que já não era uma questão. Assim ficou.

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