Francisco André chegou à comissão parlamentar de inquérito ao caso das gémeas com a certeza de que teria pouco a dizer: prescindiu da declaração inicial e disse apenas estar disponível para responder a todas as perguntas dos deputados, alertando-os para o pouco conhecimento que tinha do caso. Os próprios deputados sabiam que a audição seria relativamente curta: adotaram uma grelha de tempos simplificada e a maioria dos grupos parlamentares nem usou a segunda ronda de perguntas. No final, a audição resumiu-se a uma explicação, repetida até à exaustão pelo antigo chefe de gabinete de António Costa: a informação sobre o caso das gémeas chegou ao gabinete do primeiro-ministro como milhares de outras e foi encaminhada, segundo um procedimento habitual, para o ministério respetivo — neste caso, o da Saúde —, como milhares de outras.
No centro desta audição estiveram, essencialmente, duas datas. Em primeiro lugar, 31 de outubro de 2019, o dia em que a Casa Civil da Presidência da República enviou para o gabinete do primeiro-ministro a informação sobre o caso das gémeas. Trata-se do email enviado por Nuno Rebelo de Sousa ao seu pai, Marcelo Rebelo de Sousa, dez dias antes, contando a situação desesperada das gémeas luso-brasileiras. Após dez dias de diligências em Belém, a Casa Civil tinha decidido enviar o caso para o Governo (a decisão foi tomada depois de Belém ter percebido que o Governo estava a acompanhar um caso semelhante de uma bebé luso-descendente no Canadá, como foi dito nos últimos dias por Fernando Frutuoso de Melo e Maria João Ruela), num caso que foi entendido como uma possível pressão para favorecer este caso, por ter tido origem no filho de Marcelo.
A segunda data é o dia 6 de novembro de 2019, quando o gabinete do primeiro-ministro encaminhou aquela informação para o Ministério da Saúde, abrindo portas à segunda parte de toda esta polémica: a intervenção do então secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, e as suspeitas em torno da marcação de uma consulta para as bebés.
Sistema previa encaminhamento de comunicações para ministérios
A audição desta quinta-feira — que só durou uma hora e meia porque vários deputados repetiram vezes sem conta as mesmas perguntas — focou-se nos dias que mediaram a chegada daquela comunicação ao gabinete de António Costa e a saída para o Ministério da Saúde. André Ventura (Chega) ainda tentou forçar a ideia de que houve um longo hiato entre as duas datas, mas Alfredo Maia (PCP) interviria para recordar que pelo meio houve um feriado e um fim-de-semana, o que reduz o intervalo para uns meros dois ou três dias.
Inês de Sousa Real (PAN) foi a primeira deputada a inquirir Francisco André — e, como a maioria dos deputados reconheceria depois, a esgotar todas as perguntas que era possível fazer ao antigo chefe de gabinete de António Costa, que estava naquelas funções na altura dos factos.
Nas respostas, Francisco André resumiu a sua intervenção neste caso confirmando que só teve conhecimento dele em novembro de 2023, quando vieram a público as notícias da TVI/CNN sobre o alegado favorecimento às gémeas. Foi — como explicaria mais tarde, numa resposta a Cristina Rodrigues (Chega) — nessa altura que decidiu revisitar os seus apontamentos daquela época para concluir que a intervenção do gabinete de António Costa se limitou à receção do ofício enviado por Belém e ao reencaminhamento para o Ministério da Saúde, como era habitual.
Francisco André sublinhou até que essa informação chegada de Belém foi enviada para o Ministério da Saúde “em conjunto com outra documentação”, nomeadamente mais “cinco ou seis” casos que tinham chegado na mesma altura a São Bento e que cabiam na esfera do Ministério da Saúde. Esses casos foram encaminhados num ofício que nem sequer foi assinado por si, mas pela sua substituta, uma vez que nesse dia, provavelmente, estaria fora do gabinete ou em reuniões. “O procedimento foi o habitual”, confirmou.
O ex-chefe de gabinete de António Costa confirmou ainda que não teve “qualquer conhecimento sobre qual era o remetente originário” do caso — ou seja, o filho de Marcelo Rebelo de Sousa. A informação condiz com o que Fernando Frutuoso de Melo, chefe da Casa Civil do Presidente da República, já tinha dito na comissão de inquérito na terça-feira: que omitiu o nome de Nuno Rebelo de Sousa para evitar qualquer interpretação errónea sobre uma eventual “pressão” de Belém. O caso seria mais um entre os outros.
Nas respostas que prestou a praticamente todos os deputados, Francisco André repetiu a explicação sobre o modo de funcionamento do gabinete do primeiro-ministro, sublinhando que o sistema implementado passava por encaminhar todas as comunicações que chegassem a São Bento — seja da Casa Civil da Presidência, seja de entidades ou cidadãos particulares — para os ministérios que tivessem a tutela sobre as entidades da administração pública com capacidade para agir em cada uma das situações. “Todas as comunicações recebidas, fossem da Casa Civil da Presidência da República, fossem dos cidadãos, eram por maioria de razão reencaminhadas para os ministérios setoriais, em função da competência na matéria”, disse Francisco André. “O sistema era reencaminhar para os ministérios. Foi isso que aconteceu neste caso, como em tantos outros.”
“Não há aqui nada de anormal nem fora do vulgar”, confirmou Francisco André, repetindo que não tinha sequer memória do ofício em questão: como dizia respeito a uma matéria de saúde, foi encaminhado para o Ministério da Saúde. Quanto à tramitação que possa ter recebido nesse ministério, Francisco André disse não poder responder. Os deputados ainda tentaram fazer várias versões das mesmas questões, perguntando, por exemplo, se aquele ofício foi acompanhado de alguma nota de urgência “especial” por ter origem em Belém. Francisco André respondeu que não: “Este processo seguiu os trâmites absolutamente normais.” O ex-chefe de gabinete também rejeitou qualquer “desleixo” com o ofício, garantindo que o encaminhamento foi feito de forma regular para o Ministério da Saúde.
Questionado sobre se tinha conhecimento de mais algum caso que tenha chegado ao gabinete do primeiro-ministro depois de ter sido remetido por Nuno Rebelo de Sousa, Francisco André também respondeu negativamente e recordou que não sabia que o caso das gémeas tinha tido origem no filho de Marcelo — só o soube pela comunicação social, em 2023.
Momento tenso com André Ventura
O momento mais tenso da audição ficaria reservado para a intervenção de André Ventura, do Chega, que perguntou a Francisco André se não tinha tido conhecimento direto do ofício de reencaminhamento da informação para o Ministério da Saúde. O ex-chefe de gabinete recordou que aquele era o procedimento habitual num gabinete que recebe “milhares de comunicações” por mês, mas André Ventura insistiu, perguntando-lhe se não era feita qualquer triagem das comunicações que ali chegavam, antes de serem encaminhadas para os gabinetes setoriais.
Francisco André explicou que as comunicações eram analisadas no sentido de perceber qual o ministério que poderia ter competência para atuar. Ventura voltou a insistir, perguntando se aquilo era normal, e foi um passo mais longe, lembrando que a comunicação original continha dados médicos das crianças, que são confidenciais. “O gabinete do primeiro-ministro enviou um relatório confidencial para o Ministério da Saúde?”, perguntou Ventura. “O que está a dizer é que pegaram na carta, viram ‘saúde’ e enviaram para o Ministério da Saúde?” insistiu, subindo o tom da exaltação. “Acha que isto é normal neste país?”
A resposta de Francisco André foi repetir, serenamente, qual era o “procedimento habitual” do gabinete: receber as comunicações, analisá-las e encaminhá-las para os ministérios correspondentes. Perante esta resposta, Ventura disse mesmo que “isto está a atingir o nível do absurdo”.
Deputados lamentaram audição pouco dignificante para o Parlamento
A audição de Francisco André — feita a pedido de PSD, Chega e IL e aprovada por unanimidade dos partidos na comissão de inquérito — ficou marcada ainda por um considerável número de intervenções de vários deputados a lamentar a inutilidade do depoimento. António Rodrigues, do PSD, foi logo o segundo deputado a intervir, após as primeiras perguntas lançadas por Inês de Sousa Real, e chegou mesmo a dizer que, por ele, a audição ficava por ali — tinham passado apenas cinco minutos. Isto porque ficou rapidamente claro para todos que o único esclarecimento que Francisco André podia prestar se prendia com o mero reencaminhamento de uma mensagem para o Ministério da Saúde seguindo um procedimento habitual.
Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda, foi mais longe, lamentando que alguns partidos quisessem “empolar para espetáculo” aquilo que não passava de um simples procedimento de reencaminhamento de mensagens. Para a deputada bloquista, a audição de Francisco André não contribuiu para dignificar a atividade do Parlamento — uma vez que, subitamente, as perguntas já iam no sentido de perceber porque é que o ofício de Belém não teve um acompanhamento especial, quando o próprio objeto da comissão é perceber se houve algum favorecimento ilegítimo.
Na segunda ronda de perguntas, a maioria dos partidos optou por não acrescentar questões, limitando-se a fazer alguns comentários sobre a inutilidade da audição. António Rodrigues, do PSD, lamentou mesmo que as convocatórias para as audições tenham sido feitas antes do acesso aos documentos porque “alguém teve pressa” — e assinalou que não teria havido necessidade de ouvir Francisco André se as convocatórias tivessem sido decididas apenas depois da análise da documentação ao dispor da comissão de inquérito.
A audição a Francisco André foi a última antes das férias parlamentares. Os trabalhos só são retomados em setembro, com especial destaque para a inquirição ao ex-primeiro-ministro António Costa, que será feita por escrito. Cada grupo parlamentar tem até 6 de setembro para enviar um máximo de dez perguntas à comissão. As perguntas serão, depois, enviadas a Costa, que terá dez dias para lhes responder. Está prevista também a audição de Marta Temido, ex-ministra da Saúde, para o dia 27 de setembro.