Enviado especial do Observador em Paris, França
Começou por ser só uma curiosidade, depois passou a ser um tema de conversa, agora não se fala de mais nada a não ser isso. Para todos os adeptos que voltaram a encher a La Défense Arena para mais um daqueles dias que prometem ser “o” dia das finais da natação, até passa um bocado ao lado. Aliás, só o facto de Léon Marchand entrar em cena esta quarta-feira era mais do que suficiente para não se pensar no quer que fosse que não fosse isso – e quando chegámos à zona da piscina, o local para vender bilhetes de última hora ainda estava aberto mas apenas por engano, com um casal de franceses na casa dos 50 a darem meia volta quando perceberam que não havia mais entradas por atribuir. Os adeptos olham, vibram e entram em delírio por medalhas; os atletas, que também lutam por essa honra, querem sempre desafiar-se a si mesmos. Problema? Não estariam em condições de desafiarem também a história. E a explicação para isso está na piscina.
Início de conversa: nos primeiros quatro dias de competição, caíram alguns (poucos) recordes olímpicos, houve finais fantásticas (uma até apelidada de “Corrida do Século”) mas nem um registo mundial conseguiu ser alcançado. Olhando para as últimas três edições dos Jogos, Londres-2012 teve cinco recordes mundiais e 16 olímpicos, Rio-2016 acabou com oito recordes mundiais e 15 olímpicos, Tóquio-2020 terminou com cinco recordes mundiais e 25 olímpicos. Bem, se recuarmos a Pequim-2008 é de corar de vergonha, com um total de 25 recordes mundiais e 65 olímpicos alcançados. Os atletas ficaram piores? Não e León Marchand, a nova criação do fazedor de Michael Phelps, Bob Bowman, é exemplo paradigmático disso mesmo.
O problema é mesmo a piscina, mais concretamente a profundidade. Em termos de ambiente, a La Défense Arena ganha aos pontos em termos de ambiente às anteriores edições por estar desenhado como se fosse um pavilhão, criando um barulho e uma envolvência que só assim são possíveis. No entanto, a piscina tem só 2,2 metros de profundidade. Aí entronca a questão. Não é matemático, não andará longe disso: com uma outra profundidade, de três metros como a de Tóquio (nem é preciso recuar neste caso à de Pequim), Marchand bateria o seu recorde dos 400 estilos e Ariarne Titmus ficaria próxima do seu registo nos 400 livres. Nesta altura a própria recomendação da Federação Internacional são 2,5 metros de profundidade.
[Já saiu o primeiro episódio de “Um rei na boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor.]
Um resumo da explicação técnica: quando se nada, as braçadas criam uma espécie de onda para trás e para baixo, sendo que uma piscina de menor profundidade acaba por “prender” os nadadores ao passo que uma piscina maior evita essas pequenas perturbações, seja em corrida, seja no balanço após a entrada. Para a grande maioria dos adeptos, os registos pouco ou nada interessam. Para todos os nadadores, valem por tudo. E mais uma vez fica aquela dúvida do impacto que outra piscina poderia ter para a queda dos registos.
A quinta sessão vespertina da natação começou com uma surpresa. Mais uma. Talvez das maiores. Aliás, a ideia que ficou era que a surpresa inicial acabou por transformar-se numa outra surpresa. Expliquemos: no início da final dos 100 livres femininos, até pelas marcas referência que tinha e que fez nas meias, Siobhán Haughey, de Hong Kong, era a favorita à vitória que pudesse “vingar” o triunfo de Emma McKeon nos Jogos de Tóquio. Na viragem e até aos últimos 20 metros, a norte-americana Torri Huske, que entrou na final com uma das piores marcas, liderou a competição estando na pista 1 e parecia estar prestes a juntar um ouro ao triunfo nos 100 mariposa e nos 4×100 livres. Aí, a experiência prevaleceu para fazer história: Sarah Sjöström, sueca de 30 anos que chegou a Paris com um ouro e quatro medalhas em Jogos, passou para a frente nas últimas braçadas e ficou com um título que poucos ou nenhuns acreditavam ser possível.
Seguia-se a final mais esperada de todas, que não ficou a dever nada ao que se pensava. Kristóf Milak, que iniciou a prova como recordista mundial e olímpico dos 200 mariposa, teve uma saída melhor, esteve sempre à frente e pareceu ter até a prova quase controlada na terceira piscina. A seguir à última viragem, e só com o balanço ganho na parede, Léon Marchand começou a aproximar-se. O húngaro também quebrou em termos físicos nos metros finais mas foi o francês que voou ao som do apoio que ia chegando das bancadas para conquistar a segunda medalha de ouro nestes Jogos depois do triunfo nos 400 estilos com mais um recorde olímpico a 1.51,21. Recorde olímpico, não mundial. Mas a La Défense Arena não se importou com isso.
Não se importou, foi ficando nas meias-finais que se seguiram além da final dos 1.500 femininos ganhos à vontade por Katie Ledecky e ainda viu mais uma vitória de Marchand. Desta vez, ao contrário do que ocorreu nos 200 mariposa, o francês esteve sempre na frente dos 200 bruços com uma técnica que o levava bem mais à frente dos adversários em cada movimento, esteve 150 metros a bater o recorde mundial mas acabou por festejar o terceiro título olímpico… com o terceiro recorde olímpico. Há um autêntico Léon à solta nestes Jogos que assumiu o estatuto de grande herói nacional mas que podia ser ainda mais do que isso…