Não há dúvida de que só compilações de dispersos conseguem dar uma panorâmica fiável dos trabalhos e dos interesses dum autor. Tudo o que escreveu ao longo da vida terá valor ou interesse desigual, até pelo contexto e finalidade de cada prestação, mas só a soma desse tudo permite alcançar a medida da devoção ao ofício que foi o seu. Tal valorização, note-se, é também ela mutável com o tempo e o sujeito — o que hoje é lido duma maneira pode ser reavaliado diferentemente anos depois, e, mais ainda, cada leitor destacará numa vasta compilação algo que diverge do que preferiu quem, desde logo, a leia a seu lado e no mesmo instante… —, e para que cada um aproveite o que melhor lhe aprouver, faz sentido que “obras completas” sejam preparadas para honrar autores que se destacaram.

É bem o caso de Artur Goulart de Melo Borges (1937-), arqueólogo formado em Roma, museólogo, historiador da arte, jornalista, poeta e professor, um discretíssimo açoriano de São Jorge cujos principais trabalhos foram dedicados ao Alentejo, e em especial a Évora, onde longamente viveu e cujo museu, onde começou a trabalhar em 1979, com Alice Tavares Chicó, dirigiu de 1992 a 1999. Mas também a Elvas, cujo museu de arte sacra supervisionou logo depois, e cuja catedral estudou meticulosamente (v. o artigo de 2011 sobre D. Baltazar de Faria Vilas Boas: pp. 149-71), e num raio de ação muito alargado, através da sua direção do — também ele monumental e tido como pioneiro absoluto em Portugal — inventário artístico móvel da arquidiocese de Évora, levado a cabo de 2002 a 2014 e fixado em 18 volumes publicados pela Fundação Eugénio de Almeida.

O prefácio de Vítor Serrão e o depoimento final de Goulart sobre Túlio Espanca balizam à perfeição este Conviver com o Património, que reúne uma vintena de avulsos, como diz o título — sem pretensão antológica mas com uma clara vocação representativa. Não são “obras completas”, longe disso, mas colocam o autor num lugar a partir do qual pode ser observado com toda a curiosidade que merece.

Quem queira tomar conhecimento do percurso de Artur Goulart terá de juntar, logo que possa, a este livro o muito interessante Açores e Alentejo no Mesmo Barco: crónicas e um texto pânico (Companhia das Ilhas, 2021, 248 pp.) e, depois, o dossier de 90 páginas que o mesmo Instituto Açoriano de Cultura — de que ele foi um dos sócios fundadores, em 1955, e com 18 anos apenas — lhe dedicou, em homenagem, no último número da revista Atlântida (2023), onde há, entre uma dúzia de outros, testemunhos de admiração e amizade de Vítor Serrão, Nuno Galopim de Carvalho e Fernando J. B. Martinho (acredito que, se convocado, Santiago Macias, segunda figura do Campo Arqueólogo de Mértola, de boa memória, teria dado contributo eloquente) — três publicações nascidas, vale a pena sublinhá-lo, da iniciativa generosa de Onésimo Teotónio Almeida, um dos distintos alunos de Goulart no Seminário de Angra do Heroísmo (1962-78) e um “Amigo de sempre”, como referido na dedicatória deste Conviver com o Património. Reflexões avulsas. Com os dois livros em mãos, fica mais claro que Goulart soube entrelaçar a seriedade típica dos estudos histórico-artísticos com a ampla liberdade narrativa da crónica, género literário que adotou, na viragem do século, em páginas de imprensa alentejana e não só, e de alguma blogosfera, como ali se comprova em “O cedro das ilhas” (pp. 61-63), “Um outro adeus” (pp. 81-84; a partir dum bilhete-postal redigido pelo pintor Martinho da Fonseca), e, para não ir mais longe, até Salzburgo (pp. 111-13), “O que é feito do mar?!” (pp. 97-99).

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Título: “Conviver com o Património. Reflexões avulsas”
Organizadores: Onésimo Teotónio Almeida e Isabel Fernandes
Prefácio: Vítor Serrão
Editor: Instituto Açoriano de Cultura

Apoio: Câmara Municipal de Velas 
Páginas: 288

Nesse enfeixar de bibliografia dispersa, Conviver com o Património afigura-se-me um pouco desigual. Não inclui “As obras das igrejas paroquiais de São Jorge, entre 1667 e 1782”, publicado em Arte e Património (Urzelina, 2021), nem “O conjunto pictórico da igreja de Santa Bárbara das Manadas” — uma palestra de 2017 sobre aquela espantosa obra de arte que é património nacional e tanto merece ser visitada! —, mas integra o mais recente “Os Santuários hoje: visitas, circulação, interpretação do património”, colaboração em O Culto ao Senhor Santo Cristo e ao Espírito Santo nos Açores, nos 60 anos do Santuário do Senhor Santo Cristo (Letras Lavadas, 2023). E quanto ao Alentejo, deixa de fora “As inscrições lapidares árabes do Museu de Beja” (Arqueologia, Dezembro de 1989), “Panorâmica da epigrafia árabe em Portugal” (Estudos Orientais: Legado cultural de judeus e mouros, Instituto Oriental, 1991), “Inscrições árabes de Noudar” (Arqueologia Medieval, n.º 2, 1993), “A igreja de Nossa Senhora da Assunção, antiga Sé de Elvas” (Monumentos, Dezembro de 2008), mas também o eloquente “Dispersão de arte sacra eborense no pós-República” (Eborensia, n.º 31, 2003) — embora as invasões francesas e o período pós 1834 sejam avaliados em “Dispersão do património artístico conventual eborense” (2002; pp. 179-91) — e o inesperado “Évora e os primórdios da fotografia” (A Cidade de Évora, 1997, pp. 411-17), que reporta registos imagéticos dos irmãos Gama comunicados por Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara (1809-79) à revista parisiense L’Ilustration — aliás, artigo referido em nota da p. 279, no retrato desta figura admirável e que é um dos melhores e mais completos capítulos deste livro. Com mais uma centena de páginas, se tanto, teríamos reunida a quase totalidade da produção bibliográfica de Artur Goulart de Melo Borges em seu nome (há ainda vários artigos escritos em colaboração).

Angra do Heroísmo e Évora são cidades património da humanidade desde meados dos anos 1980, foram geminadas pouco depois “em acordo mútuo” (p. 30), “ambas tiveram no século XVI a sua época de ouro” (p. 23), e o facto de Artur Goulart nelas ter vivido alternadamente ganha contornos especiais quando evoca as figuras locais que mais o marcaram — o tenente-coronel José Agostinho (1888-1978) na ilha, Túlio Espanca (1913-83) na planície — e os cuidados de patrimonização que aí foram prosseguidos com sucesso. Já o trabalho desenvolvido na arquidiocese de Évora parece ter inspirado ao nosso autor idêntico esforço na sua terra natal, “Venturas e desventuras do património sacro da Vila das Velas” (2019). Insiste, porém: “Há duas ações possíveis e essenciais: a defesa, a conservação da memória e a difusão do seu conhecimento […] importa cuidar do que ainda existe, restaurar e conservar segundo as normas que hoje são nacional e internacionalmente aceites e que refletem o respeito e a reflexão que o património merece” (p. 31).

Goulart não gosta da expressão turismo religioso — “religioso surge a adjetivar o conceito turismo” —, porquanto “é preciso que aquilo que se vê, aquilo que se mostra apareça inserido no campo mais profundo e mais vasto da mensagem cristã”, “como pertença da relação humano-divina em Jesus Cristo” (p. 50). Mais ainda: “É demasiado frequente que quem visita uma igreja raramente perceba o contexto em que está inserida, o que representa para a comunidade em que está implantada. Pode admirar-se da originalidade arquitetónica, da beleza da decoração, da estatuária, mas que relação tem tudo isso com o sítio, com quem a construiu, com as pessoas que a frequentam?” (p. 49). É precisamente esse formulário interrogativo que vamos encontrar no museólogo que estuda ao pormenor uma lápide de dupla face com “raras inscrições em cúfico arcaico” (p. 58) que assinala a reconstrução árabe de Évora em 914-915 d.C., depois de a cidade ter sido “teatro de grande chacina” no ano anterior (p. 59), e da sua refundação no século XII, em que exibe vastos conhecimentos da presença árabe na península ibérica.

O trabalho sobre as kubbas no distrito de Évora, apresentado ao I Congresso sobre o Alentejo, em outubro de 1985, indica claramente que, com apenas meia dúzia de anos na região, Goulart de Melo Borges havia já desenvolvido extenso trabalho de campo, observando quase uma centena dessas curiosas construções quadrangulares com cúpula hemisférica, destinadas ao culto cristão, com nítida tipologia “dominante do mundo islâmico desde os mais remotos tempos” (p. 67), e uma atenção atualizada à bibliografia correspondente. De facto, em menos de duas décadas, como se reconhecerá sobremaneira em “Epigrafia árabe no Gharb” (publicado no catálogo da exposição “Portugal Islâmico”, no Museu Nacional de Arqueologia, em 1998; pp. 87-98), e em “Ibn Qasi, rei de Mértola e mahdi luso-muçulmano” (1992; pp. 75-86), o jorgense de Velas tornou-se um reputado especialista e um dos protagonistas da revolução dos estudos islâmicos no nosso país (Cláudio Torres é dois anos mais novo que ele).

Mas além da presença árabe no sul do país e na coleção do Museu de Évora, outras representações — como a pintura barroca de Josefa de Óbidos — ocuparam a sua atenção de historiador da arte e museólogo, que tão-pouco descurou protagonistas tão relevantes na cidade alentejana como o arcebispo D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, “figura excecional de educador, humanista, estudioso e colecionador, na transição do século XVIII para o século XIX” (p. 99), e o já referido Cunha Rivara, “um bibliotecário de exceção” (p. 267) — ambos são invocados em “Biblioteca Pública de Évora — lugar de encontros”, que começa assim: “Sempre entrei na PBE como se tivesse encontro marcado. Não com livros, mas com gente. E se, de início, eram com ilustres desconhecidos, cedo se transformaram em respeitáveis conhecidos e até grandes e inolvidáveis amigos” (p. 115).

Esta grande familiaridade com os temas, objetos e figuras de cultura radica certamente num contínuo trabalho quotidiano de leitor e investigador, ali facilitado pela contiguidade dos edifícios do Museu e da Biblioteca Pública — uma vizinhança ideal, a somar à de outro objeto de extenso estudo, a própria Sé, a que Artur Goulart dedica “O Santo Lenho da Sé de Évora: história e devoção” (2011; pp. 235-51). Mas numa cidade património da humanidade, com presenças históricas muito antigas e diferenciadas, a par e passo brilham focos de interesse para novas inquirições a que o historiador da arte, em particular, não deixará de dedicar o seu tempo, folheando “papéis velhos” (p. 276) ou dialogando com vivos e mortos revivos, colegas ou talvez já discípulos e continuadores. Também pelo declarado convívio em título, este é um livro exemplar.

Um sempre útil índice onomástico talvez possa ser considerado numa eventual reedição, uma vez que o não foi antes.