A ficção vai ao máximo, ficcionando-se a si mesma: é que, em Cama de Gato (Cat’s Cradle, 1963), até a religião é ficcional. O bokoninismo é coisa que vem da cabeça de Vonnegut, e os livros sagrados tiram as dúvidas sobre o karass (grupo que põe em prática a vontade de deus).
São 127 capítulos curtos, todos com elementos humorísticos. Ao longo do romance, o leitor segue a vida de Jonas, jornalista que investiga a catástrofe de Hiroxima, procurando os registos das pessoas envolvidas no bombardeamento e acabando por conseguir entrevistas com um dos filhos de Felix Hoenikker, vencedor de um prémio Nobel e um dos responsáveis pela bomba atómica. Aí descobre que Hoenikker tinha uma última invenção, gelo-nove, com potencial apocalíptico suficiente para extinguir a vida na Terra, cujo segredo estava nas mãos do filho. Jonas acaba na ilha San Lorenzo, com o filho do inventor, e ali conhece o ditador que a governa, adotando o bokoninismo, religião que, por si só, é uma paródia: as suas mentiras pretendem ser inofensivas e, sendo também absurdos, os seus dogmas procuram oferecer consolo aos crentes. Como tudo é novo no enredo, o autor também cria e cita o próprio livro de Bokonon. Com isto, mesclam-se as ideias de crença e de livre-arbítrio, estando a primeira a ser justificada pela primeira ao mesmo tempo que se cancela.
Título: “Cama de gato”
Autor: Kurt Vonnegut
Tradução: Miguel Cardoso
Editora: Alfaguara
Páginas: 288
Ora, a mera criação de uma religião já tem o seu quê de paródia, com os crentes a aderirem de forma cega a uma crença. Não há como evitar, ao longo da leitura, a horizontalidade da ideia das religiões, com as suas crenças e as suas invenções, nem com a doutrinação que procura o seguidismo. No romance, a irracionalidade provoca momentos de humor, em parte porque o humano se põe em frente ao óbvio: a crença é grande, o raciocínio é parco. Ora, introduzindo uma teoria nova, Vonnegut vai ao detalhe, explicando os dogmas da nova religião, imbuindo o texto da semântica necessária, também ela inventada. Por exemplo, “boku-maru”, acto supremo de reverência da religião, que consiste na junção de dois pés descalços de duas pessoas.
O que nunca escapa ao leitor é o tom de absurdo, seja pela ideia da suspensão da lógica que leva os crentes à religião, seja pela aposta permanente na utilização de um humor sarcástico. É que, ainda que repetida, esta estratégica não maça, não mói. Em vez disso, estrutura e torna mais densa a narrativa, blindando os pontos da ficção. A ironia é tal que as tragédias passam a graças e a noção de drama é permanentemente repensada. Isto não quer dizer que o propósito do enredo seja cómico e mais nada. Só a ideia do gelo-nove já mostra o poder da guerra, com a arma a cair em mãos que não são boas para a usar, sobressaindo aqui a negligência e as consequências trágicas da irresponsabilidade. Aliás, o próprio Hoenikker é descrito como um génio científico, mas totalmente imoral: criava pela possibilidade de criar, como resposta a um desafio, mas os efeitos da criação eram-lhe indiferentes. Exemplo:
Mas quão inocente, caramba, pode ser um homem que ajudou a construir uma coisa como uma bomba atómica? E como é possível dizer-se que um homem tem uma boa cabeça quando nem se dá ao trabalho de mexer uma palha quando a mulher mais generosa e linda do mundo, a sua própria cara-metade, está a morrer de falta de amor e compreensão…
Estremeceu e continuou:
– Às vezes pergunto-me se ele não nasceu já morto. Nunca conheci um homem menos interessado nos vivos. Às vezes acho que é esse o problema do mundo: há demasiadas pessoas em cargos importantes que estão mais mortas do que vivas.” (p. 76)
Ao mesmo tempo, salta à vista a forma como o autor brinca com a ideia de verdade, metendo na narrativa, em concomitância, verdades e mentiras, diluindo as fronteiras entre racionalidade e irracionalidade – e, dando, com essa diluição, o triunfo à segunda nas relações sociais.
Ao longo da leitura, cada parágrafo sabe a sátira. Vonnegut não tenta sequer fingir que o romance não é puro sarcasmo. Em vez disso, oferece-o ao leitor de forma exuberante, exagerando propositadamente, fazendo do próprio exagero um elemento interno vinculativo da narrativa, não um defeito, uma incapacidade de doseamento. Isso vê-se até pela forma como a ação vai acontecendo em velocidade, em capítulos rápidos, cortantes, numa construção sensorial alucinante. É que, posta a engrenagem do romance em prática, de repente a Humanidade dá por si em face ao seu desaparecimento, numa mescla rápida de ficção científica e realismo fantástico.
Fechado o romance, há a sensação de que a experiência de leitura foi uma corrida que foi escapando aos galopes pelas mãos. Encarado o progresso como um fim em si, também há a sugestão de uma estupidez quase universal, para que muito contribui a religião inventada. E, mesmo com todos estes artifícios, que mais não são do que uma estratégia milimetricamente delineada, sobressai a ideia de frontalidade por parte de Kurt Vonnegut.
A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.