À época supervisor do enredo, Daniel Filho terá cunhado na perfeição o estilo da protagonista e traçado as devidas fronteiras geográficas e culturais. “A Tieta é do Agreste, não é de Ibiza”. A anos luz da explosão turística nas baleares, do outro lado do Atlântico, na remota Santana do Agreste, esse destino inóspito no nordeste brasileiro imaginado por Jorge Amado, cuja cenografia a Globo teve que erguer a contrarrelógio, o povo assistiu com espanto ao regresso da proscrita. E quando chegou, nesse verão de 1989, chegou com tudo. Eis Tieta, num vermelho sobre vermelho que prenunciaria tudo o que veríamos nos capítulos seguintes. Os estampados leopardo (muito antes de nos rendermos ao anglicismo animal print), os brinco XL, os óculos escuros, o penteado exuberante, as calças justas e saias curtas, os saltos bem altos, as cores estridentes e os brilhos, o excesso de joias e as unhas grandes exageradamente pontadas. Uma fórmula de “breguice” que ao começo chocou, pelo gosto duvidoso, depois fez escola e tornou-se imprescindível.
“Quando me estava preparando para fazer Tieta, vi numa revista inglesa de Moda, uma pulseira, e foi uma paixão à primeira vista. ‘Essa pulseira vai ser da Tieta’. Eu mandei fazer a pulseira para dar de presente a Tieta. Dou sempre presentes aos meus personagens, sempre colaboro com uma coisinha ou outra. A pulseira foi um grande sucesso e deu-me muita sorte. Fui muito feliz com ela”, contou Betty Faria em Video Show.
O acessório vistoso, usado no braço direito, era apenas uma das peças-chave na composição da sua personagem. A atriz, então com 48 anos, recorreu aos ensinamentos da fonoaudióloga Glorinha Beutenmüller para compor Tieta. Para se ajustar aos atributos físicos que a personagem de Jorge Amado reclamava, a atriz contou com a ajuda de um personal trainer, exercitando a musculação para ganhar um corpo mais desenhado. Mas é do armário que saíram algumas das principais pérolas, muitas delas alvo atual de um certo revivalismo, como as gargantilhas.
A repercussão da novela fez com que o estilo de Tieta se tornasse tendência e Betty Faria chegou a lançar a linha Tieta by Betty Faria.
Quanto ao guarda-roupa do restante elenco, contrastava de forma radical com o da estrela mór, vestindo roupas em algodão e de modelagem simples. Coube à figurinista Helena Gastal chegar à combinação vencedora, extravagante e adepta do exagero. “Era uma forma exótica mas respeitámos o que estava escrito. Era uma época mais conservadora e muita gente estranhou. Na verdade, a história da Tieta é a da menina que andava descalça pelo areal, no meio das cabras, e que apanhava do pai, ficou fora, e voltou rica, mas não necessariamente elegante. Ela tinha umas coisas engraçadas, umas franjas, algo que hoje é mais normal, que as próprias cantoras usam”, conta Helena ao Observador a partir do Brasil, sem esquecer alguns bloqueios expectáveis. Uma das dificuldades encontradas pela equipa era conseguir que lojas sofisticadas autorizassem o uso das duas mercadorias na personagem Tieta, devido ao seu estilo excessivamente popular. “Recordo-me disso, sim, mas as marcas não podiam fazer nada. Eu comprava as peças. Quando se trabalha com figurinos há gente que tem interesse em divulgar o seu trabalho e outras que não têm interesse, mas nada nos impede de entrar na loja e comprar. Eu estava contando uma história. Não tem nada a ver com o meu gosto mas achava Tieta muito divertido”, enquadra-nos.
“No final da década de 1980, a adaptação do romance de Jorge Amado, Tieta, trouxe para a personagem principal, após seu retorno a cidade que um dia a expulsara, um figurino extravagante, repleto de peças ousadas, justas e sensuais. Por se tratar de uma cafetina, muitas marcas não quiseram vincular suas peças à personagem, mas com o tempo e a repercussão, voltavam atrás enviando peças para a produção.”, lê-se também em “Entre tramas, rendas e fuxicos – o figurino na teledramaturgia da TV Globo” (2007), de Mariana Baltar e Lilian Arruda, obra de 2007 da coleção “Memória Globo”, que recorda esses primeiros tempos em que os figurinistas, que haveriam de criar mais de 1000 peças, se viram em apuros.
Facto é que “as pessoas gostavam, ela fez muito sucesso”, diz Helena Gastal. “A Betty é boa para este tipo de coisas. Ela encara mesmo. Ela encarou aquela Tieta. Fiz muitos trabalhos com ela. Na época eu até ficava assustada. Ai meu Deus, realmente não é o meu gosto, mas ela estava tão incorporada no personagem; de facto era aquilo que precisava. Ela voltou abusada, com roupas caras mas de gosto discutível. Voltou de vermelho, toda de couro, não bonitinha e elegante mas a voltar para quebrar. Parece que estava encomendado para mim”.
Carioca, nascida em 1950, Helena Gastal estreou-se na Globo como assistente de figurinista em 1979, e haveria de fazer 36 novelas. Por dois anos, foi assistente de direção e produtora em anúncios para rádio e televisão das agências DPZ, J.W. Thompson e FilmesTrês. Em 1979, trabalhava como figurinista e produtora de arte freelance em anúncios para a televisão quando teve a oportunidade de se estrear na Globo, como assistente da figurinista Marília Carneiro em Malu Mulher (1979). Após seis meses, foi escalada para fazer a sua primeira novela, Água Viva (1980), de Gilberto Braga e co-autoria de Manoel Carlos. Viria a ser a mentora das criações arrojadas de Tieta do Agreste, mas antes desse furor ajudaria a catapultar outra febre entre as audiências brasileiras, e também à conta de uma personagem interpretada por Betty Faria.
A moda da ginástica pegou de estaca graças a uma série de figurinos saídos das conhecidas “academias de malhação” que desfilavam em novelas da emissora. “Baila Comigo”, novela de 1981 de Manoel Carlos, foi um dos casos sérios de sucesso, com o público ávido da copiar modelitos, muitos deles criados de propósito para o efeito. Faria era então o veículo do triunfo, na pele de uma professora de ginástica, com as suas populares faixas de cabelo, os conjuntos coleantes e as meias. “Roupa de ginástica era aquela coisa azul-marinho, sabe? Lá fora tinha a moda de academia, mas no Brasil não, tive que fabricar essa moda, fazer roupas adequadas… Foi bem interessante. Me lembro que tinha uns macacões, eram umas coisas bem coloridas, uns meiões de lã (…) as pessoas copiavam. Depois fui fazer o ‘Viva o Gordo’ e tinha a personagem da Claudia Raia que falava: “Vamos malhar?” E aí, me vi, de novo, às voltas com moda de academia.”, chegou a recordar à emissora Helena, que manteve o vínculo com a Globo até julho de 2020.
A figurinista, hoje frelancer, soma dezenas de novelas na sua caminhada no seio da Globo, além de cinco minisséries e incursões por musicais, humor e programas infanto-juvenis. E a verdade é que o próprio universo da Moda se intrometeu muitas vezes nos enredos que trabalhou.
Na trama de estreia Água Viva (1980), de Gilberto Braga e Manoel Carlos, Gastal fez um enorme sucesso com o figurino da personagem Stella Simpsons, de Tônia Carrero, a rica e desafiante personagem que só usava roupa de marcas caras. O público também se rendeu ao famoso brinco de raio da personagem Sandra Fragonard, interpretada por Glória Pires, que corta o cabelo depois de perder a mãe. Já em Ti-Ti-Ti (1985), de Cassiano Gabus Mendes, a história têm como âncora dois costureiros rivais, interpretados por Luis Gustavo e Reginaldo Faria. Dois anos mais tarde, Brega & Chique dizia ao que vinha logo no título: esta foi a saga que teve de um lado a sofisticada personagem de Marília Pêra contra a “suburbana cafona” Glória Menezes. Os mais velhos não esquecem certamente um Sassá Mutema, interpretado por um estelar Lima Duarte, cujo figurino, criado para a novela O Salvador da Pátria (1989), de Lauro César Muniz, também teve o seu dedo.
Se ainda restam dúvidas de que o hábito pode não fazer o monge mas é decisivo no ecrã, em Vale Tudo (1988), de Gilberto Braga, Leonor Bassères e Aguinaldo Silva, Helena vestiu a inesquecível vilã Odete Roitman, interpretada por Beatriz Segall, com saias que deixavam os joelhos à mostra, numa nota sedutora. Já no novo milénio, em 2003, Mulheres Apaixonadas (2003), de Manoel Carlos, levou a figurinista da Globo a fotografar todos os ambientes do Leblon, bairro da zona sul do Rio onde era ambientada a maior parte da história, para usar como referência na caracterização dos personagens. Em Sinhá Moça (2006), de Benedito Ruy Barbosa, o guarda-roupa teve que ajustar-se à época, recuando ao final do século XIX. E em Paraíso Tropical (2007), de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, talvez ainda se recordem do sucesso feito pelos maillots e acessórios reveladores usados pela prostituta desempenhada por Camila Pitanga.
Para mais memórias com selo Globo, e saídas dos baús cheios de look icónicos, “Entre tramas, rendas e fuxicos – o figurino na teledramaturgia da TV Globo” revê outros sucessos que saltaram da televisão para os braços dos gosto popular, como a faixa de couro que a atriz Silvia Pfeifer usava no cabelo, na novela Meu Bem, Meu Mal (1990), de Cassiano Gabus Mendes, ou o visual da atriz Lídia Brondi na novela Vale Tudo, com direito a penteado com franjinha. Fixa também a pesquisa teórica da transição do figurino, das oficinas de costura para às lojas de rua, a fim de reconstruir a história da televisão brasileira sob o viés da moda e dos figurinos das telenovelas brasileiras. Antes de Tieta, e se é de exuberância que falamos, é inevitável lembrar o estrondo saído da sátira política Roque Santeiro (1985) e na inesquecível personagem Viúva Porcina, interpretada pela atriz Regina Duarte. “Porcina vestia looks extravagantes, coloridos e espalhafatosos, que combinavam com a personalidade da personagem e que acabou caindo no gosto popular, ditando moda daquele ano. Não precisou muitos capítulos para os seus turbantes coloridos serem oferecidos em shoppings, lojas e no comércio de rua, atraindo mulheres de todas as camadas sociais. As camisas coloridas e com babados e ombreiras também passaram a ser desejadas por quem assistia à novela e até mesmo suas bijuterias chegaram ao mercado consumidor”, descrevem as autoras.
De volta a Tieta, que seria uma lídima herdeira de todo este garrido, a novela foi exibida de 14 de agosto de 1989 a 31 de março de 1990, em 197 capítulos, e em matéria de figurinos Gastal veio a contar com o reforço de Lessa de Lacerda, que chegou à emissora em 1981, estreando-se como assistente de figurinistas. Quando foi promovido passou a dar sequência a trabalhos de figurinismo que deixavam os programas para assumir novos projetos da emissora, e também contabiliza várias novelas de sucesso exibidas nas décadas de 1980, 1990 e 2000, incluindo histórias contemporâneas e tramas de época. Na novela ‘Quatro por Quatro’ (1994), de Carlos Lombardi, por exemplo, ajudou a impulsionar a carreira da atriz Letícia Spiller, intérprete da manicure Babalu, com um visual que misturava decotes e roupa curta, saltos plataforma e meias coloridas, assumidamente inspiradas nas famosas meias coloridas de lurex da novela ‘Dancin’ Days’ (1978), de Gilberto Braga.
Sobre a rodagem de Tieta, também ela daria um outro artigo, Betty Faria chegou a contar que os direitos da obra de Jorge Amado, lançada em 1977, foram comprados com o intuito de ser realizada uma produção independente. A ideia inicial era fazer uma minissérie, dirigida por Roberto Talma, para ser exibida na TV Globo. Segundo a atriz, foi ela quem negociou a compra dos direitos diretamente com Jorge Amado. Como ainda estava no elenco da novela O Salvador da Pátria (1989), que antecedeu Tieta, a sua entrada na trama só aconteceu por volta do capítulo 20.
Já Reynaldo Boury, diretor da novela, partilha a urgência vivida pela equipa nessa época. A novela inicialmente prevista para o horário das 20h era Barriga de Aluguer, de Gloria Perez, que já estava em produção e prestes a ser gravada. Mas José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, então vice-presidente de operações da TV Globo –, reprogramou Barriga de Aluguer para as 18 horas, e ordenou a produção de Tieta, maratona que começou a ser feita apenas 40 dias antes da estreia. Percalços à margem, para a história passou o essencial, incluindo o aflorar de temas como a liberdade, o amor proibido, a pedofilia e outros tabus que a arte e manha das novelas foram desmontando anos após anos. Nesta versão para o pequeno ecrã, a história começa quando uma jovem Tieta, na primeira fase vivida por Claudia Ohana, é expulsa da cidade pelo pai, o conservador Zé Esteves (Sebastião Vasconcelos), inconformado com o seu temperamento e influenciado pelas maquinações da sua outra filha, Perpétua. 25 anos depois, em pleno dia em que se reza uma missa em sua memória, é já Betty Faria que interrompe a cerimónia, numa cena de antologia.
E apesar da extravagância da protagonista, a conexão com a “cabritinha”, com o sertao baiano e com as famosas dunas de Mangue Seco, aconteceu, e perdura. “A Tieta de Helena e Lessa, revela-se mais cotidiana e popular, adequando suas idealizações à mídia televisiva e ao grande público nacional. (…) A Tieta vivida por Betty Faria, apesar do glamour, consegue facilmente ser identificada em mulheres da década de oitenta.”, saiu do colóquio sobre Moda “Tieta, do Agreste às telas midiáticas – uma breve consideração sobre o figurino e seu potencial comunicativo”. Para rever, ou ver pela primeira vez, a telenovela, ‘Tieta’ está disponível no Globoplay, a plataforma de streaming do canal.
Artigo atualizado às 20h21 com as respostas de Helena Gastal ao Observador.