Tudo começou com o que parecia ser um tom doce e habitual. Kamala Harris, recebido com uma longa ovação, subiu ao palco da Arena de Chicago na noite de quinta-feira para aceitar a nomeação do Partido Democrata como candidata à presidência. E as primeiras palavras foram as esperadas: um agradecimento ao marido (no dia preciso em que assinalam o seu aniversário de casamento), ao Presidente Joe Biden e ao “treinador” Walz, candidato à vice-presidência.

Seguiu-se a história de vida — e tudo continuava no tom banal que muitos discursos de coroação trazem. A história de amor dos pais (uma imigrante indiana e um imigrante jamaicano), os conselhos que estes lhe deram desde criança (“Corre, Kamala, corre!”, dizia-lhe o pai no parque; a mãe aconselhava que em vez de se queixar das injustiças devia “fazer algo sobre isso”) e o seu caminho até chegar a procuradora-geral do estado da Califórnia, movido em parte pelo segredo que a amiga Wanda lhe contou no pátio da escola, de que era sexualmente abusada pelo padrasto.

“Acredito que toda a gente tem direito a segurança, dignidade e justiça”, dizia a candidata a dez minutos do início do discurso, ainda sobre a sua carreira no meio judicial. “Em toda a minha carreira, apresentei casos não em nome das vítimas, mas em nome ‘do povo'”, disse, referindo-se à formulação habitual de todos os casos judiciais nos Estados Unidos (“O povo vs. o acusado”). “Em toda a minha carreira, tive um único cliente: o povo.”

E depois, olhando diretamente para a câmara, entregou a mensagem para “as pessoas com várias posições políticas que estão a ver-nos esta noite”: “Quero que saibam que prometo ser a Presidente de todos os americanos.”

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Aborto, imigração e o conflito israelo-palestiniano. Kamala resolveu falar dos elefantes na sala

Mas eis que, ainda o discurso não tinha chegado sequer a meio, Kamala Harris faz um pivô e muda o discurso. Afinal, este não era apenas o esperado percorrer da sua vida e procura de pontos em comum com os americanos “normais”, como tinha feito o seu candidato a vice, Tim Walz, na véspera. Afinal, este foi um discurso sobre um programa eleitoral e as políticas que Kamala prometeu seguir, caso chegue à Casa Branca.

Isso incluiu enfrentar alguns elefantes na sala. Primeiro, tentando manter firmes as suas credenciais mais à esquerda, fez uma defesa veemente do direito ao aborto — algo que Joe Biden, a favor da despenalização da interrupção da gravidez, mas católico, sempre se sentiu desconfortável em fazer.

Andei pelo país e ouvi as histórias de mulheres a terem abortos dentro de carros, de médicos com medo de serem presos por cuidarem das suas pacientes. De casais a tentarem aumentar as suas famílias e a terem tratamentos de fertilidade interrompidos. De crianças que sobreviveram a ataques sexuais e que podem vir a ser forçadas a levar uma gravidez até ao fim”, enunciou. “Isto é o que está a acontecer no nosso país, por causa de Donald Trump”.

Se o primeiro elefante na sala era mais à esquerda, os restantes trouxeram Kamala mais para o centro. A questão da imigração, onde é frequentemente atacada pelo adversário por ter-lhe sido incumbida essa pasta pelo Presidente, não ficou escondida debaixo do tapete. Lembrando o seu passado como procuradora, garantiu que tem em mente as preocupações de segurança ligadas à imigração em massa, mas notou que isso já estava contido na proposta costurada no Congresso com representantes de ambos os partidos, que acabou chumbada por alguns dos republicanos mais pró-Trump. Kamala Harris deixou a promessa de que, se for eleita, continuará a tentar aprovar a proposta de lei: “Podemos criar um caminho merecido para a cidadania [de imigrantes] e garantir a segurança da nossa fronteira”, prometeu.

Foi menos clara na política económica, que tanto preocupa muitos dos eleitores, deixando apenas a promessa de redução de impostos para a classe média. Mas não fugiu à luta quando abordou o tema que é provavelmente o mais difícil para a candidata de conciliar dentro do seu próprio partido: a sua posição relativamente ao conflito israelo-palestiniano.

Deixem-me ser clara. Irei sempre apoiar o direito de Israel a defender-se e irei sempre garantir que Israel tem a capacidade de se defender, porque o povo de Israel nunca mais deve enfrentar o horror que uma organização terrorista chamada Hamas provocou a 7 de outubro”, afirmou a candidata.

Mas, mantendo o ato de funambulismo, tentou deixar uma mensagem clara de apoio aos civis palestinianos, sem responsabilizar diretamente Telavive, mas classificando a guerra em Gaza como “devastadora”. “Tantas vidas inocentes perdidas. Pessoas desesperadas, esfomeadas, a fugir para encontrar segurança uma e outra vez”, descreveu, prometendo que, com Biden, irá alcançar um acordo que traga os reféns de volta e que, ao mesmo tempo, permita aos palestinianos terem “dignidade, segurança, liberdade e auto-determinação“.

O perigo de um Trump “sem limites” e a resposta do adversário na internet: “Marxista radical”

Não é que o discurso tenha sido apenas centrado em políticas e as críticas a Donald Trump tenham faltado. Bem pelo contrário: já antes tinham chegado, ferozes e a tentar provar que muito os distancia. “Considerem não apenas o caos e a calamidade [que existiram] quando ele esteve no cargo”, começou por dizer a candidata, virando-se depois para o ataque ao Capitólio.

Donald Trump tentou deitar fora os vossos votos e falhou. Quando políticos do seu próprio partido lhe pediram para que tirasse dali a multidão e os ajudasse, ele fez o oposto: ele alimentou as chamas”, disse.

Um futuro Trump Presidente seria, por isso, na visão de Kamala, uma versão ainda mais perigosa. “Imaginem Donald Trump sem limites e como ele iria usar os seus imensos poderes na presidência dos Estados Unidos não para melhorar a vossa vida, não para reforçar a nossa segurança nacional, mas para servir o único cliente que alguma vez teve: ele próprio.” E, é claro, a candidata não se esqueceu de incluir a condenação judicial pelo caso de Stormy Daniels e os restantes processos que ainda decorrem em tribunal.

Os ataques, contudo, tiveram uma tentativa de interrupção. Na sua rede social, a Truth Social, Donald Trump comentou ao minuto todo o discurso da democrata, que acusou de ser uma “marxista radical”, de querer “gastar todo o nosso dinheiro em imigrantes ilegais que estão a invadir o nosso país” e até uma pequena correção ao facto de Tim Walz ter sido “treinador-assistente” de futebol americano e não “treinador” em toda a sua autoridade.

Na Arena de Chicago, os posts de Donald Trump não tiveram qualquer influência. A grande dúvida é o impacto que podem ter no resto do país.

Kamala Harris em modo de comandante-em-chefe. EUA com o exército mais poderoso do mundo e prontidão para defrontar o Irão se for preciso

E foi precisamente por saber que o adversário a retrata como uma “marxista radical”, demasiado colada à esquerda, que Kamala Harris aproveitou grande parte do seu discurso para se tentar assumir como uma figura presidenciável ao centro numa das áreas onde Trump tem mais fragilidades: na política externa.

“Nunca me irei aproximar-se de tiranos e traidores como Kim Jong-un, que estão a torcer por Trump porque sabem que ele é fácil de manipular através de elogios e favores”, atirou a candidata democrata. Outra distância marcada face a Trump foi no tema da guerra Ucrânia, sublinhando que fez parte da delegação que avisou Zelensky da invasão russa e prometendo manter-se “forte ao lado da Ucrânia e dos nossos aliados da NATO”.

Mas a principal surpresa no tema da geopolítica foi a forma como Kamala Harris o utilizou para projetar uma imagem de força, de pulso firme, até distante de muitas das ideias e estilo da ala mais à esquerda do Partido Democrata a que tantas vezes é associada. Garantiu que, se for eleita, não hesitará em “tomar qualquer ação que seja necessária para defender as nossas forças e os nossos interesses contra o Irão e os terroristas apoiados pelo Irão” — uma política diferente da dos tempos em que Barack Obama e Joe Biden tentavam negociar um acordo nuclear com Teerão.

De forma ainda mais surpreendente, tentando projetar-se como comandante-em-chefe e promotora de um tom patriótico, Kamala Harris pôs a multidão democrata a entoar cânticos de “EUA! EUA! EUA!”.

Irei garantir que a América tem sempre a força de combate mais forte e mais letal do mundo. E irei comprir as nossas obrigações sagradas de tomar conta das nossas tropas e das suas famílias e irei sempre honrar — e nunca menosprezar — os seus serviço e sacrifício”, disse.

Por fim, Harris regressou ao início e voltou a falar da mãe, recordando um conselho que esta em tempos lhe deu: “Nunca deixes que te digam quem és; tu é que lhes mostras quem és.” Há apenas algumas semanas, poucos diriam que a candidata do Partido Democrata à presidência era esta.