Carmen aprendeu a ler aos 5 anos e todas as tardes esperava, junto ao pai, José de Burgos Canizares, vice-cônsul de Portugal em Almería, que chegassem os jornais vindos de Lisboa e do Porto. Liam-nos em conjunto e, mesmo que compreendesse pouco do conteúdo, esta “forma mais doce de espanhol” que era a língua portuguesa marcá-la-ia para sempre. Teria, contudo, que viver muitas vidas e amarguras até atravessar pela primeira vez a fronteira ibérica. Fá-lo, pela primeira vez, com mais de 40 anos, e deixa para trás o escândalo do romance com um homem 21 anos mais jovem, o famoso escritor modernista Ramon Gomez de la Serna — e a crispação política e religiosa devido às crónicas em jornais, livros, tertúlias e muitas atividades políticas na defesa dos direitos das mulheres, em especial o direito ao divórcio e ao voto que mobilizavam a sua vida em Madrid.
Chega a Lisboa deslumbrada com a República recém-implantada, considera “Portugal um farol da liberdade”, conhece Ana de Castro Osório e vive meses de um idílio amoroso com Ramon, na costa entre a Praia das Maçãs e as Azenhas do Mar. A beleza selvagem, abrupta, perigosa daquele mar lembra-lhe a infância em Rodalquilar e é expressão de uma alma intrépida e indomesticável. A Flor da Praia (1926), que acaba de ser publicado pela VS, com tradução de Joana Varela, é uma das cinco novelas que escreveu ambientadas em Portugal e que só agora, quase um século depois da sua morte, tem tradução em português. Rasurada do movimento Modernista espanhol, censurada pelo franquismo, arrumada na história da literatura como a amante de Gomez de La Serna, Carmen de Burgos, ou Colombine (como assinava), foi também olvidada “pela falta de interesse crónica que existe em Portugal face à cultura espanhola e vice-versa”, aponta a tradutora, que teve que bater à porta de muitas editoras até encontrar uma que acolhesse esta novela, inspirada num quadro de Malhoa, e num velho restaurante precisamente da Praia das Maças, que, nos anos 20, já fala daquilo que muito mais tarde aprendemos a pensar com Marguerite Duras, Ingmar Bergman, Godard ou Kundera: o amor inevitavelmente minado pelo tédio que os homens despertam nas mulheres.
As suas narrativas, aparentemente simples, são de uma ousadia moral sem paralelo nas escritoras fine seculares, em especial nas conservadoras sociedades ibéricas, onde as mulheres viviam esmagadas pela miséria da falta de saúde, de educação e de liberdade. Apesar de ter nascido numa família da alta burguesia, o pai era dono de uma mina de ouro, Carmen de Burgos y Segui nunca deixou de perceber a pobreza que a rodeava e, embora, com apenas 16 anos tivesse casado com um playboy notívago, femeeiro e alcoólico que a obrigava a trabalhar arduamente numa tipografia, nunca deixou de sonhar com a fundação de uma escola para as raparigas pobres de Almería. Mas, num tempo em que o divórcio era proibido e a violência conjugal tida como normal, a escritora passou 16 anos presa a um papel que não era o que tinha destinado a si mesma. Por volta de 1895, inscreve-se às escondidas do marido, na Universidade de Granada e estuda à distância para se tornar professora. Em 1900, na aurora do novo século, consegue o seu primeiro emprego e parte sozinha com a filha. Tem 32 anos e o mundo à espera. Em 1901, começa a escrever pequenas novelas; em 1904 tornar-se-á a primeira mulher em Espanha — e na Europa — a trabalhar como jornalista e, em 1909, será enviada para Melilla, em Marrocos, para cobrir a guerra do Rife para o jornal Heraldo de Madrid, o que faz dela uma das primeiras repórteres de guerra do mundo. Este ano, quando passam 100 anos sobre a sua estreia como jornalista, a Biblioteca Nacional de Madrid tem patente uma grande exposição intitulada “Carmen de Burgos, Colombine (1867-19932). La modernización de España”, que estará patente até 29 de setembro.
Da sua antiga existência leva apenas o sentimento de revolta pela condição das mulheres, que vai nortear vida e trabalho, quer como pedagoga, jornalista ou romancista. Em 1922, declara numa conferência que “o divórcio é uma medida higiénica fundamental à vida das mulheres”, o que provocou um levantamento da Igreja Católica espanhola, que a perseguiu, durante décadas, e lutou ferozmente junto de vários governos para que ela fosse proibida de dar aulas devido à sua situação conjugal (mulher “amantizada” com um homem mais jovem) e às suas posições públicas. Ana de Castro Osório faz dela membro honorário da Cruzada das Mulheres Portuguesas (fundada em 1916) e, mais tarde, de Burgo fundará ela própria, a Cruzada das Mulheres Espanholas e a Liga Internacional das Mulheres Ibéricas. Antes disso, a escritora fará dos seus livros, das suas crónicas nos jornais e dos currículos escolares uma arma de erosão das mais terríveis tradições que pesavam sobre as mulheres — a principal delas? O analfabetismo. Por isso, toda a sua vida foi, em última instância, dedicada a mostrar às mulheres do seu país que a educação era a chave para a sua liberdade.
Mais de um século depois, o gesto de Elisa (a heroína de A Flor da Praia) de retirar o amor romântico do centro da vida, fazendo dela uma anti-Bovary, uma anti-Karenina, continuam a parecer uma bizarria. Mas, se os movimentos pelo celibato feminino que vêm crescendo na Coreia do Sul, na China, e, mais recentemente, nos Estado Unidos, o movimento “Quit Dating” se afirmarem na luta política das mulheres, talvez a modernidade de Carmen de Burgos seja finalmente reconhecida.
“A Flor da Praia”: uma viagem ao fim do amor
Embora tenha escrito dezenas de novelas, quatro romances, centenas de crónicas, panfletos, ensaios, biografias, o olhar e o lugar de fala que revelou são, essencialmente, os de uma viajante. Desde o momento em que deixa Almería, em 1900, até à morte, em 1932, Carmen de Burgos não mais parou de viajar: Europa, Norte de África, Argentina. Dessas viagens resultaram vários livros, onde a paisagem não é uma natureza morta mas uma projeção das várias realidades humanas que vai encontrando. Assim, A Flor da Praia é tanto uma novela como uma crónica de viagem, onde a grande protagonista é a paisagem abrupta, íngreme e resvaladiça da costa a Oeste de Lisboa, por onde caminham incessantemente Elisa e Enrique, um jovem casal, que sem dinheiro para contrair matrimónio, decide partir para Portugal, onde, sem conflitos morais, se tornam amantes. Fixam-se na Praia das Maçãs, num quarto com uma varanda sobre o mar, no andar de cima de um restaurante que, de facto existiu, chamado Flor da Praia, e acreditam que o amor que sentem será para sempre. Essa mesma varanda foi imortalizada, em 1918, pelo pintor Malhoa, pelo que não é certo que Carmen tenha estado com Ramon de la Serna nessa mesma pensão, embora a tradutora,Joana Varela, considere mais esta opção, ou se a inspiração para o romance lhe veio do quadro.
A imagem que este livro nos dá da Lisboa da segunda década do século XX contrasta com as tonalidades cinzentas, o clima tenso e volátil que em Portugal se associa à 1ª República. Elisa e Enrique veem um Rossio deslumbrante de cores solares, a sua excitação ante as lojas da baixa, onde podem enfim sentir-se quase ricos devido à diferença cambial, criam uma sensação de estranheza e irrealidade. O mesmo acontece com Sintra e depois com as praias, onde um mar não domesticado pelo turismo ainda é tão belo quanto mortal. A praia é um lugar de contemplação, passeio de domingo para os que têm dinheiro, e um lugar de pobreza e morte para os que dele vivem.
Ao contrário do que pode parecer ao leitor distraído, Carmen usa a paisagem como manifestação dos estados de alma de Elisa, e a realidade crua daquele lugar vai surgindo aos poucos, como reflexo do desvanecimento da paixão e do vazio que se vai instalando entre os amantes. Os nevoeiros, as ravinas, o recorte das montanhas a caírem no Atlântico ganham uma dimensão pesadélica — se cairmos aqui, pensa Elisa, “o sangue salta mais alto que o pó”.
Tendo tido uma relação de mais de 20 anos com Gomez de la Serna, o escritor vanguardista e inventor de uma nova forma literária — as greguerias — tendo frequentado as tertúlias modernistas ligadas à revista Prometeu e a movida madrilena inicio do século XX, seria estranho que Carmen de Burgos não tivesse sido influenciada por estes fluxos artísticos, que habilmente cruza com os seus ideais cívicos e morais. Nesta novela encontramos o mesmo método que a escritora — e tantas mulheres ao longo dos milénios — usaram como arma de guerrilha: a discreta mas persistente destruição do que as desagrada, escondida entre as máscaras da normalidade. Usando as crónicas, as reportagens, os livros de viagem esta escritora ia falando de temas tabu, mas fazia-o através de uma espécie de tromp d’oeil, onde, só de um certo ângulo a imagem escondida pode ser vista.
Em A Flor da Praia, toda a força disruptiva e arrojada aparece sob a forma de um chapéu que atravessa discretamente o livro e tudo o que de Burgos não pode dizer diretamente, sobre uma mulher que rejeita as convenções de matrimónio, sexualidade e até, de classe, ela fá-las aparecer, simbolicamente, nesse chapéu comprado em Lisboa e abandonado no comboio em Madrid. “Claro que se pode perceber que é ela que se entedia com ele, que se farta”, diz Joana Varela, ao Observador. “Mas acho que 99% das vezes são as mulheres que se fartam dos homens e não o contrário, simplesmente elas não tinham, e muitas ainda não têm, coragem de o assumir.”
Columbine, a arte de correr pela margem do abismo
gosto do impensado, do incerto: atrai-me o desconhecido: o encanto do livro que não se leu e da partitura que nunca se ouviu (…) se fosse rica, não tinha casa. Uma mala grande sempre em viagem. Detendo-me onde me agradasse, fugindo do enfadonho (…) aspirando o aroma das coisas sem as analisar(…)”
[Carmen de Burgos, Autobiografia na revista “Prometeu”, 1909]
Quando trocou Almería por Granada, e depois por Madrid, Carmen de Burgos era uma mulher proscrita: tinha abandonado o casamento, não se podia divorciar, tinha uma filha para criar ou seja, a sociedade espanhola, de 1900, não tinha lugar para ela. Mas isso parece ter sido mais assustador para os outros do que para a própria, sempre pragmática e mais empenhada em ser do que em parecer. Rapidamente, começou a escrever para compensar o baixo salário como professora primária, trocou Granada por Madrid para continuar a estudar. Começa a interessar-se pelos movimentos sufragista e feminista. Em 1903 entra como cronista para o jornal Diário Universal, onde chega a editora.
Começa a assinar sob o pseudónimo de Colombine, a personagem inventada pela Comédia del Arte, no século XIV ,em Itália, e pelo qual é ainda hoje conhecida. A adoção deste pseudónimo não terá sido por acaso. “Colombina” (pombinha) foi a primeira personagem feminina a aparecer no teatro italiano, ainda que apenas para uma dança breve. Ela encarnava todos os estereótipos femininos: era bela, coscuvilheira, intriguista, promiscua, estava apaixonada por Arlequim e era amada, em segredo, por Pierrot. Adotar para si este avatar mostra a capacidade de ironia da escritora: brincando e desafiando a sua própria condição.
Não é panfletária, mas não teme a polémica. Escreve livros de culinária, beleza, dá conselhos sobre elegância, que são, na verdade, manuais de educação estoica. Sempre muito prática, de Burgos sabe que para poderem mudar as suas condições de vida as mulheres têm que, antes de mais, ter saúde física e mental e sabe também que, como já ensinavam os gregos, “o cuidar de si” é uma poderosa forma de luta. Assim, falando de coisas aparentemente banais, como usar ou não maquilhagem, ferros para encaracolar o cabelo, dietas, exercício físico, tudo numa linguagem absolutamente atual, vai mostrando a importância da mulher dar prioridade a si mesma e não ao marido.
O direito ao divórcio é a sua grande luta e, em 1904, consegue que o seu jornal, na altura o Heraldo de Madrid, leve a cabo um inquérito público sobre o tema. Foi um sucesso pelo número de respostas que obteve, mas demonstrou que a maior parte do país que lia jornais não queria esse direito. A partir deste momento, a escritora passa a estar debaixo do fogo da Igreja e dos setores mais conservadores da sociedade. Apesar disso o seu reconhecimento como jornalista e escritora consolida-se: entre 1905 e 1906 viaja pela Europa e escreve reportagens sobre a condição das mulheres, a educação, as escolas, os hospitais. Numa delas escreverá: “O verdadeiro progresso dos povos está na ética.”
Nesse mesmo ano, o marido morre e o novo estatuto de viúva liberta-a finalmente dos constrangimentos do matrimónio. Funda a sua própria tertúlia, “Miercoles con Colombine”, onde a literatura se mistura com a luta cívica. Em 1909, é destacada para a frente de guerra em Melilla, tornando-se uma das primeiras mulheres a estar, como repórter, num cenário de conflito armado. Infelizmente, este facto é tantas vezes ignorado na História dos Media, feita, maioritariamente, em países anglo-saxónicos. Aproveita para denunciar a falta de condições dos soldados espanhóis em Marrocos. A eclosão da 1ª Guerra Mundial apanha-a na Rússia, com a filha, e faz uma viagem atribulada de regresso a Espanha. Tenta ir como repórter para as trincheiras, não consegue, mas fará reportagens a partir dos hospitais de retaguarda, com a ajuda dos grupos de feministas francesas.
Em 1909, tinha conhecido Ramon Gomez de la Sierna, 21 anos mais jovem, e iniciado com ele uma relação amorosa que durará 20 anos, pela qual — mais uma vez — pagará o preço. Em 1910 faz-se socialista espanhola no PSOE, de onde sairá em 1917, frustrada pela pouca ação do partido na luta pelos direitos da mulheres. É nesta década que começa a viajar para Portugal e, durante os anos de guerra, Ramon consegue construir uma casa para ambos no Estoril, a que chamará o Ventanal (janelão). Nesse período, ele dá-se com os modernistas portugueses, cria uma forte amizade com Almada Negreiros e Carmen escreve sobre o poeta Mário de Sá Carneiro. Em 1920 passa a colaborar com o jornal português O Mundo.
Gomez de la Serna escreverá, em 1925, um romance também ambientado em Portugal, A Quinta da Palmyra (VS). A tradução destes dois autores é um projeto antigo de Joana Varela, a tradutora que foi também a diretora da revista Colóquio Letras da Gulbenkian e fundadora da importante editora Contexto. Como recordou, “tinha esta vontade desde que, em 2010, quando participei na exposição Suroeste e conheci o ensaísta e tradutor Antonio Sáez Delgado. Foi ele que me chamou a atenção para a importância do casal Burgos/La Serna e a sua curiosa relação com Portugal.”
Por volta dos anos 20, Carmen começa a sofrer de doença coronária, escreve um romance autobiográfico sobre a violência conjugal e o livro La Mujer Moderna e sus Derechos que se constituirá como uma marco histórico na luta pelos direitos das mulheres. A eclosão da Guerra Civil em Espanha, a descoberta do romance entre Ramon e a sua própria filha, Maria, serão duros golpes, mas não param Carmen de Burgos, que continua a fazer conferências e crónicas sobre temas tabu como a homossexualidade, a educação sexual das mulheres, a investigação da paternidade dos filhos ilegítimos. Só em 1931 vê finalmente ser consagrados na lei o direito ao divórcio e ao voto feminino. Morre em 1932, de ataque cardíaco.
Depois de décadas na obscuridade, em parte devido à censura da sua obra pela ditadura franquista, a escritora será redescoberta a partir de 1989, com os livros de Concepcion Nuñez Rey, que fazem incidir luz sobre a amplitude da sua vida e dos seus livros, mas também como ela contribuiu para a construção do universo literário de Ramon Gomez de la Serna.
Este ano de 2024, quando passam 100 anos sobre a sua chegada ao jornalismo, acontece finalmente o reconhecimento institucional da vida, da obra, das lutas e renuncias de Carmen de Burgos em prol dos direitos das mulheres; além de uma grande exposição dedicada ao seu trabalho literário, tem havido também um esforço reconhecer o seu legado como pedagoga, nomeadamente, na construção de currículos escolares que visassem os direitos humanos. Além de vários colóquios, e até do lançamento de uma coleção de selos com o seu rosto foi criado um mural, Sevilha, com o seu rosto traçado em street art.