Gisèle Pelicot foi violada por mais de 80 homens entre 2010 e 2020. O crime que está a chocar França envolveu um planeamento detalhado dos atos de violência sexual pelo próprio marido. Dominique Pelicot drogou sucessivamente a mulher, colocando-a num estado de inconsciência total, e convidou estranhos, que conhecia online, para a violarem na casa de ambos. “Pu-la a dormir, ofereci-a e filmei“, confessou o agressor quando foi detido.
O julgamento do caso começou esta segunda-feira no Tribunal de Avignon, no sul de França, e prevê-se que dure quatro meses. Dominique Pelicot, de 71 anos, e os outros 50 arguidos podem ser condenados a 20 anos de prisão se forem condenados pelo crime de violação agravada. Os investigadores do caso não conseguiram, até agora, identificar e localizar mais de 30 outros homens que surgem nas gravações dos atos de violência sexual.
Por vontade da própria vítima todas as audiências do julgamento serão públicas. Gisèle Pelicot, que chegou ao tribunal acompanhada dos seus três filhos, como descreve o The Guardian, não queria um julgamento à porta fechada porque entende que “era isso que os seus agressores quereriam“, como afirmou o seu advogado, Antoine Camus — que destaca a “provação horrível” que a mulher terá de passar ao “viver as violações que sofreu ao longo de 10 anos”, acrescentando que a sua cliente não tem memória dos abusos que só descobriu em 2020.
Dominique Pelicot foi detido no dia 2 de novembro de 2020, depois de um segurança o ter apanhado a filmar por baixo das saias de mulheres num supermercado local. Na investigação do delito, a polícia encontrou um ficheiro com a designação “abusos” numa pen USB ligada ao seu computador, que continha 20.000 imagens e filmes da sua mulher a ser violada quase 100 vezes ao longo de dez anos. Desde a sua detenção, declarou-se sempre culpado de todos os crimes pelos quais está a ser acusado que envolvem a mulher.
Violadores não podiam usar perfume e tinham de fugir ao menor movimento da vítima
O plano de Dominique Pelicot era sempre o mesmo. Esmagava comprimidos para dormir e calmantes no jantar ou vinho da mulher e esperava que ela ficasse inconsciente para deixar entrar homens na sua casa que a violavam de seguida. Os registos médicos mostram que, apenas num ano, o francês conseguiu angariar mais de 450 comprimidos que utilizava para colocar a mulher num estado de inconsciência total.
Os dois viviam numa casa na cidade de Mazan na região francesa da Provença. Os homens, que além do próprio marido de Gisèle, a violavam e abusavam sexualmente eram recrutados online em sites e chats dedicados à divulgação e promoção da prática de atos sexuais não consentidos.
Os homens — entre os 26 e os 73 anos no momento em que foram detidos — eram convidados a deslocar-se à casa do casal e recebiam instruções claras do marido de Gisèle Pelicot para não cheirarem a qualquer tipo de perfume ou a fumo de cigarro. A intenção era não deixarem vestígios que alertassem a mulher para as agressões sexuais que tinham tido lugar enquanto estava inconsciente.
Tinham também uma ordem clara, no caso de a vítima se mover, ainda que minimamente, para pararem a violação e abandonarem a casa imediatamente. Os pormenores estão a ser revelados pelos investigadores à medida que o julgamento decorre e aumentam o choque e indignação da opinião pública e das dezenas de mulheres que protestam à porta do tribunal em França a exigir a pena de prisão máxima para todos os envolvidos nas dezenas de crimes perpetuados ao longo de uma década.
A sua filha, que utiliza o pseudónimo Caroline Darian, sentiu-se mal na sala de tribunal depois de o juiz divulgar que tinha sido encontrada no computador do homem uma pasta intitulada “Junto da minha filha despida”. Gisèle Pelicot permaneceu calma e reservada durante toda a audiência, enquanto o seu agora ex-marido estava sentado em frente dela, na outra extremidade da sala do tribunal.
Entre os 50 homens que estão a ser julgado estão enfermeiros, um jornalista, um antigo agente da polícia, um guarda prisional, um soldado, um bombeiro e um funcionário público. A grande maioria vivia nos arredores de Mazan, uma cidade com cerca de 6.000 habitantes.
Vários dos acusados negaram as acusações, dizendo à polícia que não faziam ideia de que Gisèle Pelicot não era uma parceira voluntária dos atos sexuais que com ela praticaram e acusaram o homem de 73 anos de os ter enganado.
Os crimes revelados depois deste que colocam Dominique Pelicot como principal suspeito de um homicídio em 1991
Uma caixa de pandora abriu-se depois de Dominique Pelicot ter sido detido. Em outubro de 2022, quando já estava em prisão preventiva há dois anos no âmbito da investigação sobre as violações cometidas contra a sua mulher, o homem de 73 anos foi chamado da sua cela na prisão de Baumettes, em Marselha, para ser interrogado por dois investigadores do departamento de investigação criminal que tinham chegado de Paris.
Segundo o Le Monde, um juiz de instrução da unidade de “casos arquivados” de Nanterre, um subúrbio de Paris, pediu que o ADN de Dominique Pelicot fosse testado em relação ao que tinha sido encontrado no sapato de uma mulher, Stella B., que era agente imobiliária e foi vítima de uma tentativa de violação em 1999.
Os investigadores ligaram então este caso a um outro ainda mais antigo: a violação e o assassínio de Sophie Narme, a 4 de dezembro de 1991, em Paris. Narme também era uma jovem agente imobiliária. A jovem foi violada e morta enquanto mostrava um apartamento a um homem que se apresentou com um nome falso.
No interrogatório, em 2022, Dominique Pelicot não confessou nenhum dos dois crimes, mas admitiu conhecer a vítima da tentativa de violação em 1999. “Em relação a esta jovem que deve ter crescido e que estará a pensar: sou eu”, assumiu.
No entanto, negou que a tenha agredido sexualmente. Na altura, com 46 anos, disse que teve “um impulso” quando passou pela agência imobiliária onde Estella trabalhava. Disse ao juiz de instrução francês que “não tinha intenção de ter relações com ela”, afirmando que tinha “apenas intenção de a imobilizar (…), talvez para olhar para ela”. Mas nunca conseguiu responder em relação ao que teria acontecido no caso de ela não se ter conseguido libertar em autodefesa.
Segundo o Ministério Público de Nanterre, a investigação judicial sobre estes dois casos está “quase concluída”, cita o jornal francês.
Por enquanto, no seu cadastro consta apenas uma condenação: uma pena de prisão suspensa de oito meses, em fevereiro de 2021, por ter filmado por baixo das saias de clientes num supermercado do sul de França — sendo este o pequeno caso que, graças ao estudo do conteúdo do seu telemóvel, computador e discos rígidos, revelou o caso das violações repetidas à sua mulher.