A Europa enfrenta um “desafio existencial” que só será superado se forem feitos investimentos que equivalem ao dobro daquilo que foi investido na reconstrução pós-Segunda Grande Guerra – o chamado “Plano Marshall”. O alerta foi feito nesta segunda-feira por Mario Draghi, antigo presidente do BCE que foi, também, primeiro-ministro de Itália, num relatório entregue à presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, e apresentado publicamente em Bruxelas. Sem esses investimentos, alerta Draghi, o continente vai ficar para trás, no contexto global, e vai sucumbir a uma “lenta agonia“.

Foi há cerca de um ano que a Comissão Europeia pediu a Mario Draghi para partilhar a sua visão sobre como a Europa poderá continuar a ser economicamente competitiva (face a blocos como a EUA e a China) ao mesmo tempo que garante a sustentabilidade ambiental e a resposta aos desafios da inovação tecnológica.

O resultado desse trabalho foi conhecido nesta segunda-feira, num documento com cerca de 400 páginas onde Mario Draghi diz que a UE tem de avançar para a emissão regular de dívida comum, como aconteceu na Covid-19 (o programa que deu origem aos Planos de Recuperação e Resiliência). Além disso, a UE deve fazer um investimento maciço em defesa e lançar uma nova estratégia industrial comunitária.

“A situação neste momento [da Europa] é muito preocupante”, afirmou Mario Draghi, acrescentando que “o crescimento tem vindo a abrandar desde há muito tempo, na Europa, e ignorámos isso… Agora já não podemos ignorar essa facto, porque as condições alteraram-se“. E alteraram-se, explicou o antigo líder do BCE, porque vivemos agora num mundo mais protecionista e já não se pode contar com a energia barata que a Rússia sempre forneceu – em simultâneo, a Europa está obrigada a investir mais na sua defesa num contexto em que os desafios demográficos não estão a ser combatidos e, por isso, a população está a reduzir-se.

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Mario Draghi salientou que a “Europa enfrenta atualmente uma guerra convencional na sua fronteira oriental [da Ucrânia] e uma guerra híbrida em todo o lado, incluindo ataques às infraestruturas energéticas e às telecomunicações, interferências nos processos democráticos e a utilização da migração como arma“.

750 a 800 mil milhões de euros em investimentos adicionais. Por ano

Se o plano de reconstrução do pós-Guerra (Segunda Grande Guerra), o Plano Marshall, custou o equivalente a 2% do Produto Interno Bruto (PIB) europeu daquela altura, os investimentos que Draghi referiu iriam valer até 5% do PIB – ou seja, seria necessário investir mais do que o dobro (na proporção do PIB atual e de então). Na prática, o italiano afirma que será necessário aumentar os investimentos em 750 a 800 mil milhões de euros por ano, um valor que deve ser assumido por todos os países de forma mutualizada.

“A UE deve avançar para a emissão regular de ativos seguros comuns para permitir projetos de investimento conjuntos entre os Estados-membros e ajudar a integrar os mercados de capitais”, afirmou Draghi, referindo-se ao tema politicamente delicado das chamadas “eurobonds“, cujo precedente foi aberto no plano de saída da pandemia de Covid-19.

Se as condições políticas e institucionais estiverem reunidas, […] a UE deve continuar, com base no modelo do Plano de Recuperação da UE [adotado durante a Covid-19], a emitir instrumentos de dívida comuns, que seriam utilizados para financiar projetos de investimento conjuntos que aumentarão a competitividade e a segurança da União”, argumenta Mario Draghi.

Apesar do precedente aberto na pandemia, alguns países veem com desconfiança a emissão de dívida conjunta porque isso poderá significar encargos partilhados sem garantias suficientes de que os países se responsabilizam de igual forma por essa dívida. A resposta, para Draghi, está em regras orçamentais mais fortes: “a emissão desses ativos numa base mais sistemática exigiria um conjunto mais sólido de regras orçamentais que garantam que um aumento da dívida comum seja acompanhado de uma trajetória mais sustentável da dívida nacional”.

A Alemanha, por exemplo, continua a descartar as “eurobonds” emitidas de forma regular (embora tenha aceite a emissão extraordinária relacionada com a pandemia). O ministro das Finanças alemão, Christian Lindner, disse recentemente que a dívida conjunta não resolveria os problemas da UE e que a Alemanha – a maior economia do bloco de 27 países – não concordaria com essa hipótese.

Mario Draghi propõe, também, que, “para financiar uma série de programas centrados na inovação e no aumento da produtividade, os Estados-membros possam considerar aumentar os recursos disponíveis para a Comissão, adiando o reembolso do Plano de Recuperação da UE“, numa alusão ao pagamento das verbas dos Planos (nacionais) de Recuperação e Resiliência.

Propondo neste relatório uma “nova estratégia industrial para a Europa”, o ex-governante elenca ainda o setor da defesa como uma das prioridades comunitárias, assinalando que “a deterioração das relações geopolíticas também cria novas necessidades de despesa com a defesa e a capacidade industrial de defesa”.

Por essa razão, vinca que “a indústria da defesa necessita de investimentos maciços para recuperar o atraso“, calculando que, se todos os Estados-membros da UE que fazem parte da NATO cumprissem este ano a meta de 2% de investimento, as despesas com este setor aumentariam 60 mil milhões de euros.

São também necessários investimentos adicionais para restaurar as capacidades perdidas devido a décadas de subinvestimento e para repor as existências esgotadas, incluindo as doadas para apoiar a defesa da Ucrânia contra a agressão russa”, apela.

Cálculos da Comissão Europeia divulgados em junho passado revelam que são necessários investimentos adicionais na defesa de cerca de 500 mil milhões de euros durante a próxima década.

“Temos de perder a ilusão de que só a procrastinação pode preservar o consenso”, avisou Draghi, alertando que “chegámos ao ponto em que, sem ação, teremos de comprometer o nosso bem-estar, o nosso ambiente ou a nossa liberdade“.

* Com Agência Lusa