Visivelmente perturbado, o homem responde à pergunta do jornalista: “Sim sou eu, não aguentei mais, matei-a”. Problema: está a ser transmitido em direto na televisão italiana o que provoca um debate sobre a ética (ou falta dela) dos media.

Loretta Levrini, de 80 anos, tinha sido encontrada morta na cama pela filha neste domingo à tarde. E o irmão, Lorenzo Carbone, de 50 anos, estava a ser procurado pelos carabinieri, a polícia italiana, há um dia, como suspeito de ter estrangulado a mãe que sofria de demência há 15 anos. Agora, um jornalista do Pomerggio Cinque, programa da Mediaset, televisão italiana (das mais vistas em Itália fundada por Silvio Berlusconi) que estava a acompanhar a história e se encontrava junto ao local do crime, repara no homem perto do intercomunicador da casa e pergunta-lhe: “É o Lorenzo Carbone? O que está a fazer aqui? Matou a sua mãe?”. E o homem confessa tudo ao microfone, perante as câmaras, numa declaração que está a correr o mundo.

O caso deu-se esta segunda-feira em Spezzano di Fiorano, em Modena, no norte de Itália. Em lágrimas Carbone diz que matou a mãe “instintivamente”. O jornalista pergunta: “Fez o quê? Estrangulou-a?”. E ele responde: ” Sim, primeiro tentei com a almofada, depois tirei a fronha e tentei com a fronha, depois usei umas fitas.” Nervoso, acrescenta: “Por que é que fiz isto? Não sei, mas não aguentava mais, a minha mãe estava entre a demência e o Alzheimer, e eu não aguentava, repetia-se muito”.

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Conta como fugiu para a povoação vizinha, como vagueou durante um dia pelas ruas até que decidiu voltar para a casa que partilhava com a mãe: “Não sabia o que dizer à polícia”.

Depois da confissão, a polícia, alertada pela apresentadora do programa, Myrta Merlino, prende o homem, também em direto. Mas a história não acaba aqui. Levanta-se imediatamente uma polémica sobre o facto de a televisão ter transmitido tudo, até a sua prisão, em tempo real. Aliás, Merlino avisou os espectadores: “Vamos mostrar-vos em direto a detenção de um assassino”. 

Várias vozes se levantaram na praça pública, de jornalistas e não só, contra a Mediaset, reacendendo-se o debate sobre os limites do jornalismo e “a televisão da dor” — um formato que explora tragédias pessoais para gerar audiência — como lhe chamou outra emissora televisiva, a Tiscali. A transmissão gerou indignação nas redes sociais onde explodiram críticas sobre o possível impacto negativo da exibição de uma confissão tão sensível.

“O que aconteceu hoje em Pomeriggio5 é muito grave”, escreveu Gaia Tortora, vice-diretora do TG La7 na rede social X. “Isto não é o nosso trabalho. Estamos em último lugar, a quebrar normas éticas.”

Ermes Antonucci, jornalista do jornal Il Foglio, questionou a necessidade de transmitir uma entrevista “com um homem claramente confuso”. “Não basta chamar a polícia e explicar o que aconteceu sem divulgar o vídeo, como felizmente aconteceu? O circo dos media atingiu um nível muito baixo”, lamentou.

A apresentadora do programa Myrta Merlino defendeu a sua decisão afirmando ter consultado a polícia previamente e argumentando que o jornalismo tem o dever de informar, mesmo que o conteúdo seja perturbador.

Ao Corriere Della Sera, Merlino disse que  voltava a fazer exatamente o mesmo. “Segui dois princípios: a minha consciência e o meu profissionalismo. Repetiria tudo o que autorizei. A notícia é dada”.  Conta que recebeu o telefonema do correspondente alguns minutos antes de entrar em direto. “Tive pouco tempo para tomar uma decisão. Só me importava uma coisa: não prejudicar a investigação. O homem era procurado. Liguei rapidamente à polícia. Autorizou-me a transmitir as imagens da entrevista. Raciocinei como jornalista.”

Especialistas como Luciano Garofano, ex-comandante dos Carabinieri, apoiaram a decisão de Merlino, argumentando que o jornalismo investigativo tem o dever de ajudar a resolver os crimes. O ex-comandante comparou este caso com o de Ferdinando Carretta, que também tinha confessado o assassinato da sua família numa entrevista, o que ajudou na resolução do crime. Para Garofano, estes momentos são fundamentais para o avanço das investigações.

O jornalista Gianluigi Nuzzi, por sua vez, reforçou que o jornalismo não deve “fechar os olhos” quando uma notícia é impactante.

Mas há ainda outras dúvidas para além das éticas, refere a imprensa italiana: se a transmissão em direto poderá vir a comprometer as investigações em andamento (pode ter afetado tenha afetado a recolha de provas e testemunhos), além de levantar preocupações sobre a presunção de inocência e o direito à privacidade, tanto do acusado quanto da vítima.

Para além disso, outras questões se levantam como as consequências legais da confissão feita em direto para a população italiana. Embora tenha sido espontânea, a admissibilidade de tal depoimento em tribunal dependerá de avaliações judiciais.