Tal como Todd Phillips o concebeu por escrito (em parceria com Scott Silver) e filmou, e Joaquin Phoenix o interpretou, o Joker do filme homónimo de 2019 era a versão proletarizada e vitimizada da personagem criada por Bob Kane nos comics de Batman. O Joker já conheceu várias incarnações cinematográficas, dependendo dos realizadores, das linhas narrativas e do espírito dos tempos em que se tem manifestado, bem como da sua evolução nos próprios comics, e desde que Jack Nicholson lhe deu corpo no Batman de Tim Burton, em 1989 (Cesar Romero foi o primeiro a interpretá-lo, na série de televisão dos anos 60).

O Joker de Phoenix, vulgo Arthur Fleck, é um estereótipo fatigado da vulgata sociológica, o criminoso mentalmente frágil e perturbado, um pobre diabo vítima quer de uma infância desgraçada às mãos de uma mãe negligente que só tinha frequentava homens brutais, quer da “sociedade”, representada pelas instituições públicas incompetentes ou em falência, que foram incapazes de o compreender e auxiliar. E que por isso permitiram que se transformasse num assassino com uma dupla personalidade em conflito, e no líder grotesco e amoral de uma revolta social  violenta e niilista.

[Veja o trailer de “Joker: Loucura a Dois”:]

Em Joker: Loucura a Dois, vamos encontrar Arthur detido num hospital-prisão, à espera de ser julgado pelo assassínio de cinco pessoas, e onde é gozado e destratado pelos guardas chefiados por Jackie (Brendan Gleeson), um sádico sorridente. Maryanne (Catherine Keener), a sua advogada, está a tentar salvá-lo da cadeira elétrica provando que não foi ele que cometeu os crimes porque tem uma dupla personalidade e que o seu alter ego maligno, que se manifesta na pessoa do Joker, é o responsável pelos assassínios. Entretanto, Arthur começa a frequentar o clube musical da instituição e lá conhece Lee Quinzel (Lady Gaga), uma pirómana que lhe expressa a sua mais profunda admiração pelo Joker. É este que ela vê nele, e não o patético Arthur, e tudo faz para o convencer disso. E há amor à primeira vista entre ambos.

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[Veja uma entrevista com Joaquin Phoenix e Todd Philips:]

E quando estamos à espera que Arthur e Lee executem uma fuga espectacular e vão ambos espalhar o caos e o terror em Gotham City… começam os dois a cantar. Joker: Loucura a Dois transforma-se então numa espécie de musical mutante, perverso e onírico, em que, a todo o pé de passada, os dois apaixonados se põem a cantarolar sozinhos ou um para o outro, e protagonizam números de canto e dança que imaginam dentro das suas cabeças, apoiados em melodias de musicais da Broadway e de Hollywood, e em clássicos do cancioneiro popular americano. Arthur e Lee são muito menos o Joker e Harley Quinn da DC, do que versões psicopatas de Sonny e Cher, Frank Sinatra e Peggy Lee ou Ike e Tina Turner. E Lee é também um sucedâneo decaído da figura do palhaço trágico da cultura popular.

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Se em Do Fundo do Coração Francis Ford Coppola usou os apetrechos do musical para desmontar as ilusões e as fantasias que o mesmo musical constrói sobre a vida real, em Joker: Loucura a Dois – e salvo as devidas distâncias e diferenças – Todd Phillips faz o mesmo para desconstruir os filmes de vilões dos comics, e desmontar a própria figura do Joker. Arthur, na sequência das alegações finais do tribunal, desmente ser o Joker e confessa ter sido ele, o desgraçado, solitário, triste e perturbado Arthur, quem matou as cinco pessoas e também a própria mãe. Já não é uma ameaça, já não quer matar ninguém nem transformar-se num super-vilão entregue ao crime e à anarquia. A maquilhagem escorreu, acabou-se a fantasia, ficou a realidade dura e crua E por isso Lee sai de cena. A sua paixão era o Joker, não Arthur.

[Veja uma entrevista com Lady Gaga:]

O filme abre com um inusitado pastiche dos velhos desenhos animados da Warner assinado por Sylvain Chomet, que dá o tom para o que vai acontecer a seguir. E se o conceito que preside a Joker: Loucura a Dois — desfazer e desmitificar um dos mais coloridos vilões dos comics — é suficientemente atrevido e consistente (além de comercialmente arriscado) para deixar o seu potencial público muito desconcertado, o contrapeso que o tolhe é a sua parcimónia visual, expressa nos números musicais. Onde se pedia um forte contraste de espectacularidade, há apenas, e quase sempre, timidez cénica. Um musical, qualquer que seja o seu contexto, quer-se expansivo e arrebatador, não tolhido e macambúzio.

[Veja uma sequência do filme:]

Lady Gaga surge claramente subutilizada, e sua personagem podia ser interpretada por outra qualquer atriz capaz de cantar, enquanto Joaquin Phoenix insiste em recorrer a uma limitada paleta de tiques, caretas e manifestações vocais para incarnar um Arthur Fleck/Joker que continua a padecer de subnutrição dramática. Para um filme com a habilidade, as pretensões e o topete de Joker: Loucura a Dois, falta-lhe algo muito importante, que há aos pontapés em A Roda da Fortuna, de Vincente Minnelli, que Todd Phillips refere diretamente a certa altura, e de que utiliza uma das mais célebres canções: capacidade de entretenimento.