Não sendo – para já –  coisa de todas as estantes em Portugal, Han Kang não é propriamente desconhecida. Quando o anúncio do Nobel foi feito em Estocolmo, já a autora sul-coreana contava com quatro publicações no país, todas com selo da Dom Quixote.

Nascida em Gwangju, na Coreia do Sul, em 1970, a autora recebeu esta semana o mais alto galardão da literatura mundial. É a primeira autora sul-coreana a recebê-lo, e a quinta asiática, seguindo-se a Yasunari Kawabata e Kenzaburo Oe (japoneses) e a Mo Yan e Gao Xiangjian (chineses). No momento da atribuição do prémio, Mats Malm, secretário permanente da Academia Sueca, salientou a “intensa prosa poética, que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana”. Já Anders Olsson, poeta e crítico, que resumiu em Estocolmo o percurso literário de Kang, salientou o cruzamento de várias áreas artísticas, como as artes visuais e a música, no território da escrita.

O tom poético da prosa, o drama humano e a amplitude estilística são, assim, os motivos que encabeçam a decisão do Comité do Nobel. Sem outras hipóteses em cima da mesa, olhemos para os livros já publicados em Portugal, que, é bem verdade, mostram uma espantosa versatilidade estilística e temática.

“A Vegetariana”

Em 2016, com tradução de Maria do Carmo Figueira, a D. Quixote publicou A Vegetariana. Foi este o primeiro sucesso internacional da autora, cuja tradução para o inglês venceu o Man Booker International Prize em 2016, ganhando terreno a autores como Elena Ferrante ou Orhan Pamuk. Com isto, abriu-se caminho à autora para mais internacionalizações. Este livro, que catapultou Han Kang para prateleiras de todo o mundo, teve peso na decisão do Comité do Nobel, que considera que ali se “retrata poeticamente” as consequências da decisão da protagonista.

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Esta, mulher banal, ao acordar de um sonho grotesco, decide deixar de comer carne. A prosa metafórica veicula ainda a revolta dessa mesma mulher contra a forma como é vista pelo marido, que a relega para um espaço secundário dentro da casa e da relação, dando-lhe o papel de utensílio e de objecto sexual. A Vegetariana pega, assim, em questões de liberdade, de humilhação silenciosa, de violência psicológica e física. Mostra já o apreço da autor por assuntos que, mesmo fora de vista pública, conseguem ir aos calos.

“Atos Humanos”

Em 2017, foi publicada em Portugal a tradução de Atos Humanos. Nesse mesmo ano, a autora veio a Portugal, marcando presença na Feira do Livro do Porto. A narrativa partiu de um episódio horrendo acontecido em Gwangju, onde Kang cresceu. Em 1980, a Coreia do Sul era governada por Chun Doohwan, sucessor de Park Chung-hee, ditador assassinado uns meses antes. O novo governo trouxe uma repressão maior do que a anterior, prolongando-se a lei marcial, controlando-se a imprensa, sonegando-se a liberdade de expressão. Por todo o país, os estudantes revoltaram-se contra isto e contra as universidades fechadas. Em Gwangjiu, a repressão foi de tal forma violenta que a população local se juntou aos estudantes, criando-se milícias que expulsaram as forças de autoridade da cidade. O problema é que o exército voltou dias depois, e isto culminou num dos piores massacres do país, tendo sido contabilizados milhares de mortos nas manifestações pró-democracia. Aqui, Kang viu o massacre a partir de dentro, contando a história de Dong-ho, um rapaz que seguiu o melhor amigo até à manifestação: ao ouvir tiros, largou-lhe a mão, e acabou à procura dele entre os cadáveres.

A brutalidade respira, por isso, em cada página do romance, descrevendo-se quem perdeu a vida e quem foi torturado na prisão e ainda quem, após o horror, e após anos, não conseguiu voltar a referir o assunto. Neste romance, Kang pegou num dos episódios mais trágicos das últimas décadas da Coreia do Sul, fazendo florir na literatura o que a vida tem escondido. E, partindo de personagens que sabem a gente a sério, teceu um relação direta, empática, com o leitor. Para isso, muito ajuda a violência retratada, de uma crueza chocante, e muito ajuda o outro lado da moeda, a onda de solidariedade entre os cidadãos que, de pé, ajudavam os caídos. É um romance que põe luz sobre a humanidade em momentos de escuro, fazendo contrapor o movimento de dar as mãos ao movimento de as usar para espancar.

“O Livro Branco”

Em 2019, foi publicada a tradução portuguesa de O livro branco. Tão díspar dos romances anteriormente mencionados, viria a ser fulcral na decisão do Comité do Nobel, que salientou o seu carácter “poético” e as suas “orações seculares”. Ou seja, mais características que mostram, no entender de quem tomou a decisão, a amplitude estilística e a diversidade narrativa do trabalho de Kang.

Neste livro, a autora escreve sobre coisas brancas, literalmente coisas e literalmente brancas, como o sal, o arroz ou a lua. É uma narrativa em grande parte metafórica, com a ideia do branco a aludir para uma ideia de pureza. A narrativa, porém, não é a mera listagem de objetos, antes a relação de uma não-relação. Kang conta a história da própria mãe, que perdeu a primeira filha, duas horas após o parto. O sofrimento dos pais da bebé abate-se também sobre os leitores, que depois seguem pelo eixo da relação da nova filha, que talvez não existisse caso a primeira tivesse sobrevivido, com a ideia da primeira. Com uma lentidão lírica, Kang trata a ausência da irmã morta num cenário também ele despido: uma cidade abraçada pelo frio da neve, com prédios destruídos por bombardeamentos da segunda grande guerra.

“Lições de grego”

Publicado em Portugal no ano passado, Lições de Grego é o último romance de Kang a cá ter chegado. E eis uma narrativa diferente das anteriores, com a história de amor entre uma mulher que deixou de conseguir falar e o seu professor de grego antigo, que está prestes a ficar cego. O romance acaba por ser uma reflexão sobre a perda, já que, além das capacidades, ambos têm outras dores: a mulher perdeu a mãe recentemente, assim como a custódia do filho; o homem, além de estar prestes a perder a autonomia, foi abandonado pelo pai e vive dividido, desligado, entre as duas culturas dos países em que cresceu, a Coreia do Sul e a Alemanha, tão diferentes entre si.

São estes problemas que criam a relação empática e os empurram um para o outro, procurando-se a intimidade onde certos sentidos falham. A história do homem e a da mulher vão sendo contadas à vez, com técnicas diferentes: a dele é na primeira pessoa, dirigindo-se às mulheres da sua vida; a dela é na terceira pessoa omnisciente.

“Despedidas Impossíveis”

Este ano, será ainda publicado, de acordo com a informação da editora, o romance Despedidas Impossíveis, o mais recente da autora laureada. No ano passado, este romance foi o vencedor do Prémio Médicis. Com uma lista de romances tão diversos, e com o selo do Nobel em cima, este romance será aguardado com mais expectativa.