912kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Silva & Bártolo: memória em caleidoscópio

Dois colecionadores, curadores, professores e parceiros, José Bártolo (1972-) e Jorge Silva (1958-), uma vez mais juntos numa demonstração da presença do design e da ilustração na história do livro.

Esta é uma constatação central deste "Para Ser Eterno Basta Ser um Livro": "as artes gráficas portuguesas têm uma matriz muito mais vinculada ao desenho do que à tipografia"
i

Esta é uma constatação central deste "Para Ser Eterno Basta Ser um Livro": "as artes gráficas portuguesas têm uma matriz muito mais vinculada ao desenho do que à tipografia"

Esta é uma constatação central deste "Para Ser Eterno Basta Ser um Livro": "as artes gráficas portuguesas têm uma matriz muito mais vinculada ao desenho do que à tipografia"

Nunca será de mais reincidir nesta pedagogia, se quisermos sair da vulgaridade e protagonizar uma atualidade criativa bem consciente do que foi feito antes de nós, senão com genialidade, ao menos com qualidade suficiente para ser lembrado — e ao mesmo tempo, observar tudo isso com uma clara, aguçada noção do contexto histórico e técnico em que aconteceu. E mesmo quando, nesta publicação e na bela exposição que lhe corresponde (na Casa do Design de Matosinhos — e que merece itinerância e até, sejamos ousados, internacionalização…), há uma leve sensação de déjà vu, esse baralhar e dar de novo tem, ainda assim, virtudes próprias para quem sabe que a reinvenção do passado é um trabalho constante e contínuo, a todo o tempo enriquecido por renovadas e talvez surpreendidas abordagens, com novas peças soltas, num sobressalto valorizadas.

Numa abordagem inovadora, a exposição foi desenhada como um meta-livro, reclamando uma atenção mais fina ao modo como o objeto participa das nossas vidas.

Não se trata só de avaliar o livro em si mesmo, também há de observar-se a leitura como ato e a relação física que todos temos com ele: “O nosso corpo — escrevem — tende a ajustar-se à anatomia do livro. O formato do livro e o seu design não são, apenas, suporte e forma em relação ao conteúdo: são eles próprios, também, conteúdo. O formato de um livro modela modos de interação do nosso corpo com ele: permite que o transportemos no bolso ou exige um suporte para podermos folheá-lo; convida a um ritmo acelerado de leitura ou leva-nos a desdobrar as folhas e a manipulá-las lentamente” (pp. 47-48).

No caso presente, é o livro do “extraordinário século XX” (p. 69) que se apresenta em perspetiva portuguesa panorâmica, como principal arco histórico que há muito constitui o campo de trabalho e investigação de qualquer um dos dois, Bártolo e Silva, embora fosse desejável que — um dia — idêntico esforço de investigação e crítica incida sobre a história e o design de periódicos e afins, na enorme variedade dos seus objetos, dos jornais às revistas, dos almanaques aos folhetos de cordel, e recuasse meio século. Os autores reconhecem, e bem, que «uma compreensão mais efetiva da atividade editorial portuguesa do início do século passado, e das relações entre esta atividade e o mercado livreiro e os hábitos de leitura, aconselharia fazer esse recuo ao século XIX”, entre outras coisas para enquadrar “evoluções tecnológicas que renovam a indústria gráfica e a imprensa nacional” e “aceleram a partir da década de 1860”, permitindo a editores e livreiros na viragem do século, “em alguns casos com assinalável sucesso, potenciar um mercado em crescimento” (pp. 67-68). Silva, em particular, não se tem cansado de demonstrar que o modernismo gráfico dos anos 1920 veio enfim derrubar uma estética oitocentista para lá de obsoleta que contaminou e congelou o ensino das belas-artes e quanto dela resultava. Sete casas-editoras que deixam “marca indelével na edição do século XX constituem-se antes de 1901” (p. 96), desde a Livraria António Maria Pereira, de 1848, até à Editora Guimarães, fundada em 1899.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR


Título: “Para Ser Eterno Basta Ser um Livro”
Autores: José Bártolo e Jorge Silva
Editor: Esad—idea, investigação em Design e Arte
Design: João Queirós e Leonor Félix
Páginas: 604

Os autores mostram-nos, aliás, que “a figura do editor, tal como a compreendemos atualmente, é, em grande medida, uma consolidação do século XX”, pois “oficinas de tipografia, oficinas de encadernação, papelarias e, sobretudo, livrarias dedicavam-se à edição de livros” (p. 93). Toda a gente que em diferentes postos e modos os torna realidade (dos editores aos ilustradores e fotógrafos, dos designers aos gravadores e impressores) ganhou então um novo protagonismo, mas, contas feitas, a conclusão é de que, salvo raras exceções, ao longo das décadas a ilustração e o capismo ganharam larga vantagem sobre a tipografia (ou grafia em tipo) dos livros, por ausência duma direção gráfica integrada (direção técnica, parece-me mais ajustado). E esta é uma constatação central deste Para Ser Eterno Basta Ser um Livro: “as artes gráficas portuguesas têm uma matriz muito mais vinculada ao desenho do que à tipografia”. Mesmo que “insuficiências do parque tipográfico e escolhas de papel privilegiando o custo sobre a qualidade contribuíram, em diversos casos, também para a publicação de livros onde as imperfeições gráficas saltam à vista” (pp. 52-53), mesmo que «a dificuldade do diretor artístico intervir no processo de composição e produção gráfica corresponde ao modus operandi mais comum e o seu espaço de criação tende a ficar restrito à conceção da capa” (p. 55), não basta dizer que nos faltou algo como o manual de estilo tipográfico da Penguin Books (Jan Tschichold, 1947) — ou uma cultura oficinal do mesmo calibre, norte-americana ou europeia, que Rodrigues Miguéis refere numa citada carta a Saramago —, porquanto é a própria modéstia e a exaustão mecânica da nossa indústria gráfica a condicionar gravemente o que durante décadas foi feito.

Do meu ponto de vista, e embora o quadro desta exposição não seja o lugar apropriado para um debate sobre isso, a irrevelantíssima presença do sistema Monotype no quadro industrial português condicionou fortemente a qualidade da composição e impressão dos nossos livros, algo a que só a Sá da Costa soube resistir de modo consistente com a sua parceria com a Tipografia Guerra, de Viseu, dos anos 50 aos 80. De resto, pouca ou mesmo nenhuma atenção é dada à influência — bastante incisiva, aliás — das transições tecnológicas, em particular a da tipografia à fotocomposição e ao offset, sobre o apuro técnico dos impressos durante esses períodos.

Dois grandes temas, claramente percetíveis como convém, Coleções e Temas, dominam esta história editorial do século passado em “caleidoscópio” (p. 81), sendo uma primeira parte, ou “capítulo”, dedicada ao exercício — um tanto radical, mas de excelente efeito, sem dúvida — de “explosões” visuais, com a ampliação de pormenores de capas, numa resposta à dificuldade de exibir livros, já admitida, entre outros, por Paulo Pires do Vale numa inesquecível mostra na Fundação Gulbenkian em 2012, “Tarefas Infinitas. Quando A Arte e o Livro se Ilimitam” (v. pp. 71 e 153-61). “Transversais a todo o século, as coleções assumem um papel central na estratégia editorial e na caracterização do mundo dos livros, do seu contexto e da sua expressão gráfica» (p. 73), pelo que foram escolhidas trinta e duas — “um número que podia ser multiplicado por dez, resultando, ainda assim, numa amostra manifestamente lacunar” (p. 74).

É óbvia a riqueza do aluvião informativo contido neste "Para Ser Eterno Basta Ser um Livro"

É realmente aqui que melhor fica exposto o vasto conhecimento desta dupla de curadores e bibliófilos, pois cada coleção e alguns dos livros que as compõem são antecedidos de elucidativas notas historiográficas e críticas, mesmo quando, em casos que se diria obscuros, alcançam dar-nos informações capazes sobre como, quando e por quem tais livros foram feitos. “Não é invulgar encontrarmos coleções de sucesso nos catálogos de casas-editoras portuguesas que são cópias de coleções de editoras francesas, espanholas e brasileiras” (p. 78), mas elas também se filiam em correntes artísticas e movimentos culturais, ou exprimem influências pessoais diretas  — por exemplo, as capas da “longuíssima” (p. 330) coleção Vampiro, da Livros do Brasil, como «lente» de aproximação portuguesa ao surrealismo (e contaminou outras, da Minerva e da Édipo), ou as da Biblioteca Arcádia de Bolso, em demonstração da “capacidade de Sebastião Rodrigues acompanhar a renovação editorial anglo-saxónica” (p. 76). Outras vezes, encontramos o timbre único de pintores como António Charrua, em capas para a coleção Presença, da editora do mesmo nome (v. pp. 396-99), logo após bolsa da Fundação Gulbenkian que lhe facilitou périplo europeu e a correspondente “atualizada cultura visual”, ou de Paulo-Guilherme, para Orbe, da Livraria Clássica Editora, na mesma década e na seguinte.

O “capítulo” Temas organiza filões editoriais como o livro policial, a literatura colonial, a infanto-juvenil, a propaganda estado-novista, a edição neo-realista, os chamados “editores malditos” (ou terão sido apenas livres?) e os livros proibidos pela censura política.

A riqueza do aluvião informativo contido neste Para Ser Eterno Basta Ser um Livro reclamava seguramente a inclusão dum índice onomástico (mesmo tratando-se dum “catálogo”, que em geral não os têm, de facto), que mais depressa o tornasse útil, como é, a quem o consulte com propósitos de estudo e pesquisa. Na bibliografia de Jorge Silva e de José Bártolo, juntos ou a solo, constituirá doravante mais uma obra de referência, como tantas outras que já nos deram — e certamente continuarão a dar —, compensando em duas décadas apenas o enorme, escandaloso, persistente vazio de bibliografia portuguesa sobre edição, design gráfico e ilustração. É obra, como costuma dizer-se.

A exposição “Para Ser Eterno Basta Ser um Livro — Editorial e design do livro em Portugal no século XX”, está patente na Casa do Design, em Matosinhos, até 27 de outubro de 2024, de terça a sexta-feira das 10 às 13 e das 15 às 18 horas, e aos sábados, domingos e feriados das 15 às 18 horas.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.