Aquele que começou por parecer um boicote à proposta de referendo à imigração, levada à Assembleia da República pelo Chega, acabou como um debate em que nenhum partido ficou em silêncio. E a responsabilidade foi do CDS-PP que, pela voz de João Almeida, rejeitou que a imigração “passe como um tema que pode não ser debatido”.

Ora, a história do debate começou com a intervenção inicial do Chega, onde Vanessa Barata defendeu que as quotas para imigrantes são necessárias para “distinguir quem vem por bem e faz falta e quem vem desrespeitar e atentar contra povo e segurança” em Portugal, apontando para a necessidade de “esforços complementares” para se combata a “imigração descontrolada”.

Nos minutos que se seguiram, a presidente da Assembleia da República em funções naquele momento, Teresa Morais, alertou para a inexistência de inscrições dos restantes partidos para que se desse seguimento ao debate (“Julgo que passou tempo suficiente para que as direções das bancadas decidissem o que fazer”) e, sem respostas, chamou André Ventura à tribuna para fazer o encerramento do debate. Já com o presidente do Chega pronto para iniciar o discurso, Teresa Morais pediu que aguardasse uns segundos para um esclarecimento, já que João Almeida garantia que tinha pedido a palavra para intervir no debate. O deputado do CDS assegurou que o fez antes do fecho das inscrições, a mesa da Assembleia da República manteve que não, mas André Ventura voltou ao lugar e permitiu um rumo diferente para o debate.

“Todos os temas merecem ser debatidos e não deixaremos nunca que o problema da imigração passe como um tema que pode não ser debatido. Era o que faltava que tantas vezes tivéssemos de discutir propostas absurdas do BE, PCP e Livre e hoje não utilizássemos o nosso tempo para intervir”, começou por dizer o deputado democrata-cristão, que arrancou aplausos da bancada do Chega — e se viu obrigado a sublinhar que estava ali para “discordar” da proposta de referendo.

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Na intervenção, João Almeida ainda recordou que a “já existiu a política de quotas por pressão do CDS”, mas que “a mesma nunca foi eficiente em Portugal”, realçou que “é preciso rigor na entrada e na saída” de imigrantes — “só pode entrar quem legalmente tem esse direito” — e também capacidade para o Estado “poder fiscalizar e conseguir afastar os que cá estão ilegalmente”.

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Daí em diante, todos quiseram a palavra. Paula Cardoso, do PSD, arrancou aplausos a muitas das bancadas da esquerda com um discurso onde afirmou que o “referendo não resolverá como, por milagre, os problemas dos imigrantes”, até porque considera as quotas uma “clara violação aos direitos fundamentais e humanos”. A deputada entende que as quotas seriam como uma “escolha por catálogo” e recusou a ideia de que as pessoas que chegam a Portugal vieram com motivações criminosas ou para viver em más condições.

Recordando os emigrantes portugueses que muitas vezes saíram do país de forma ilegal em busca de melhores condições de vida, a deputada social-democrata sublinhou ainda que “não se referendam direitos humanos” e que “não se tira às pessoas o direito ao trabalho e o direito de escolher onde, como e com quem querem viver”. “Não é digno de um Estado democrático tratar pessoas como se de mercadoria se tratasse.”

Seguiu-se Mariana Leitão que, em nome da Iniciativa Liberal, desconstruiu aquilo que diz serem mitos usados pelo Chega para alimentar a narrativa da imigração descontrolada, desde a ideia de que existe uma “substituição demográfica” quando Portugal é um país de “imigrantes e emigrantes” ao facto de os imigrantes contribuírem para um “saldo positivo” na Segurança Social. Para os liberais, a proposta de referendo serve apenas para “virar pessoas contra pessoas”.

O PAN, pela voz de Inês Sousa Real, considera que “a solução levanta sérias dúvidas do ponto de vista de constitucionalidade”, pelo que o partido se recusa a alinhar em “show-offs“. A deputada ainda recordou que o referendo “começou por ser uma condicionante” do Orçamento do Estado — argumento que António Filipe, do PCP, também usou: “A proposta já perdeu a validade como moeda de troca e hoje em dia não vale nada.” Antes, o deputado comunista ainda recuperou o quase-boicote para dizer que chegou a “haver a expectativa de que toda a gente tratasse esta proposta do Chega como mereceria ser tratada: deixar os proponentes a falar sozinhos”. Tudo porque a proposta, na visão de António Filipe, “é lixo e é como lixo que deve ser tratada”.

Isabel Moreira, do PS, acusa o Chega de atuar perante a proposta “no mesmo modo” em que estaria “a atuar se pudesse haver referendo: simplificando, dividindo, cravando clivagens, divulgando desinformação”. “Não vamos perder nem mais um minuto a ajudar a normalizar o ódio, vamos repetir o que deve ser dito na casa da democracia: obrigada a todos e a todas que escolhem Portugal para viver e desculpem sempre que vos falhamos”, afirmou, recusando que haja qualquer ligação entre imigração e aumento de criminalidade.

Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, começou por se dirigir à deputada Paula Cardoso para dizer que “bom seria que a política do PSD fosse mais de acordo com as suas palavras em vez de repetir a retórica da imigração descontrolada e de mudar a lei em consonância com essa retórica”. “Ao acabar com mecanismo de regularização de imigrantes o Governo está a escancarar as portas à imigração clandestina”, alertou a deputada bloquista, explicando que os imigrantes continuam a entrar mas sem estarem legalizados: “É uma política que defende clandestinidade e beneficia máfia e patrões sem escrúpulos.”

Também o Livre, através de Paulo Muacho, apontou que “os únicos argumentos que o Chega apresenta são mentiras” e que apenas é capaz de “reproduzir as mentiras trumpistas que ouve lá fora”.

No fim do debate que esteve para nem acontecer, André Ventura deixou claro que, na hora da verdade, os partidos “não têm coragem de dar a palavra aos portugueses para decidirem sobre imigração porque sabem que perderiam”.

“O país precisa de contingentes para imigrantes e da sua regulação”, disse Ventura, frisando que estava a citar Carlos Moedas e sublinhando que aquelas palavras não foram ditas pelo Chega, mas sim pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa eleito pelo PSD: “Era tão bom que o PSD caísse na verdadeira essência do combate da direita à imigração ilegal neste país”, rematou. O líder do Chega disse ainda que o Parlamento “não vive nas ruas do país” e que desconhece a “enorme invasão de pessoas” em vários concelhos do país.

Numa referência a António Filipe, e de dedo em riste apontado para as bancadas da esquerda, ainda atirou: “Nunca nos deixaremos associar por aqueles que, clamando-nos de lixo, são o lixo da história desta casa, da Europa e do mundo.” As palavras ainda lhe valeram uma reprimenda de José Pedro Aguiar-Branco, presidente da Assembleia da República, para dizer que António Filipe tinha chamado “lixo” à proposta de referendo e não aos deputados: “Não me parece que seja o tratamento urbano que merecemos aqui na Assembleia.”