Depois de um primeiro dia que contou com a presença de líderes mundiais, chefes de Estado e Prémios Nobel da Paz, o segundo dia das Conferências do Estoril começou focado sobretudo na saúde, dos seres humanos e do planeta, e dos possíveis caminhos para garantir que futuras gerações vivem mais — e, sobretudo, melhor.
O destaque da manhã desta sexta-feira foi para um convidado habitual: Richard Roberts, Prémio Nobel da Medicina, que esteve presente na edição do ano passado e regressou este ano, para uma palestra focada no papel positivo das bactérias na sociedade. “Há dez vezes mais bactérias que células no corpo humano. (…) Elas são nossas amigas. Há várias doenças, como o cancro, que as bactérias combatem. Fazem-no porque o nosso corpo é a casa delas, e elas não querem ver a casa a arder”, explicou Roberts, que advertiu a plateia da NOVA SBE a ter cuidado para “não tomar demasiados antibióticos” ou arriscar matar “as nossas amigas”.
O premiado investigador voltou ainda a um tema que tinha abordado na edição do ano passado: os alimentos geneticamente modificados e as críticas aos governos e associações como a Greenpeace pelos esforços para os bloquear. “Milhões de crianças em África já morreram porque foram bloqueadas plantações de arroz com recurso a OGM”, defendendo que a utilização de organismos geneticamente modificados na produção alimentar pode ser uma arma poderosa para mitigar as consequências das alterações globais na cadeia de produção alimentar. “Temos o conhecimento, sabemos fazê-lo.”
O segundo dia do evento arrancou com uma intervenção do ministro da Educação, que salientou a importância da ciência, da inovação e da educação para a democracia e para a construção do futuro. “Temos de nos coordenar e de trabalhar em conjunto”, alertou Fernando Alexandre. “Os problemas são muito complexos e as soluções não são evidentes. Muitas vezes, os líderes populistas vendem soluções simples para essas questões – estão a enganar as pessoas. Essa foi em parte uma das razões que me levou a trocar a academia pela política.”
A ascensão dos autoritarismos num cenário geopolítico em processo de transformação esteve em destaque na conferência, que juntou no palco três membros do Clube de Madrid. Dalia Grybauskaitė, antiga Presidente da Lituânia e uma das primeiras líderes mundiais a fazer soar o alarme da política expansionista russa, foi contundente nas críticas a Vladimir Putin. “Se nós, as sociedades democráticas, deixarmos que um criminoso de guerra se autointitule ‘líder informal do mundo’, podem ter a certeza de que se vai tornar um líder.”
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Já o ex-Presidente da Mongólia, Elbegdorj Tsakhia, país que tem mantido alguma abertura para com Putin, defendeu o direito à “liberdade de viajar”, mas garantiu estar “100% solidário com o sofrimento dos ucranianos”. O papel da China também foi discutido, com o antigo primeiro-ministro da Tunísia a reconhecer que Pequim “está em posição de se tornar um dos líderes mundiais”. Mas que papel terá o regime de Xi Jinping no futuro continua uma pergunta em aberto. “Quando se é um líder, a responsabilidade aumenta”, advertiu Mehdi Jomaa.
Ideias provocadoras, da saúde à luta climática
De um modo geral, pode dizer-se que a manhã deste segundo dia na NOVA SBE trouxe algumas ideias “provocadoras” sobre o futuro do desenvolvimento humano. Exemplo disso foi o painel que juntou os médicos e investigadores Alexandra Jønsson e John Brodersen, numa discussão sobre um fenómeno cada vez mais reconhecido na comunidade médica: o excesso de diagnósticos e medicação da população, particularmente a mais envelhecida.
“As pessoas ouvem isto e perguntam: ‘como assim, não devo fazer testes? Não é sempre bom saber?’ Sei que pode ser assustador”, admite Jønsson. “Mas a verdade é que há vinte anos éramos saudáveis se não fossemos ao médico. E o paradigma mudou, agora quem é saudável é quem usa os sistemas de saúde e quem toma vitaminas e comprimidos para manter o colesterol baixo. Temos de mudar esta ideia”.
Jønsson argumenta que esta realidade — que admite ser controversa e que não reúne consenso entre a classe médica — coloca pressão desnecessária nos sistemas de saúde e prejudica a qualidade de vida das pessoas que, mais do que a longevidade, deve ser a prioridade. “Tenho 43 anos e gostava de chegar aos 90, mas só se tiver saúde. Tendemos a encarar o envelhecimento como um problema, uma coisa que tem de ser ultrapassada. Mas é uma benesse. (…) O pior é que o excesso de recursos alocados a pessoas que se calhar nem precisam significa que estamos a descurar outras áreas, como a saúde mental e cognitiva”, diz.
A investigadora e professora da Universidade de Roskilde, na Dinamarca, acredita que tecnologias como a Inteligência Artificial podem ajudar a resolver este problema – desde que acompanhada do elemento humano. “Não devemos usar a IA como um ‘Super-Doutor Google’. Mas podemos usá-la, por exemplo, para ecografias e outros exames de imagiologia, sobretudo para determinar que pessoas estão saudáveis e não precisam de cuidados, para que nos possamos focar em quem realmente precisa”.
Outra “provocação” teve lugar no que toca ao tema do clima. Num discurso parcialmente feito em tonganês, língua oficial do arquipélago de Tonga, no Pacífico, a ativista Elizabeth Kite alertou para os efeitos do aquecimento global no seu país e instou os países desenvolvidos a olharem para o “terceiro mundo” em busca de lições. “Estimativas apontam para que o meu país vá ficar parcialmente submergido até 2050. É incompreensível como é que ainda há quem não acredite nas alterações climáticas.”
No final da manhã teve lugar uma discussão sobre o ponto de situação da transição energética. Michael Libereich, autor e consultor de energias renováveis, disse que ainda estamos muito longe do objetivo. “O carvão está aos poucos a desaparecer das nossas indústrias, mas não está a ser substituído a um ritmo correspondente.” Jorge Moreira da Silva, ex-ministro do Ambiente e atual diretor executivo do United Nations Office for Project Services (UNOPS), mostrou-se mais otimista quanto ao futuro, mas advertiu: “limitar a subida da temperatura a 1,5 graus não é uma recomendação: é uma questão de sobrevivência”.