Camilo Mortágua, pai das deputadas do Bloco de Esquerda Mariana e Joana Mortágua, morreu aos 90 anos, segundo uma nota enviada à Lusa pela família.
“A família informa que Camilo Mortágua morreu esta madrugada, dia 1 de novembro, aos 90 anos. Partilhamos com os muitos amigos e companheiros que se cruzaram com Camilo Mortágua a alegria de termos testemunhado uma vida de convicções, de compromisso com a liberdade e com a solidariedade”, pode ler-se na nota.
De acordo com as informações avançadas, o velório decorre, esta sexta-feira, a partir das 17h30 na casa mortuária de Alvito (Rua da Misericórdia). O funeral está marcado para sábado, às 11h00, partindo da casa mortuária para o cemitério de Alvito (distrito de Beja).
Nas redes sociais, as filhas Mariana e Joana Mortágua, ambas deputadas do Bloco de Esquerda, deram partilharam a notícia com uma fotografia do pai. Joana Mortágua deixou a seguinte frase: “Há nomes tão fortes que a morte só leva emprestado.”
“Há nomes tão fortes que a morte só leva emprestado”. A família informa que Camilo Mortágua morreu esta madrugada. pic.twitter.com/m6i38RzMB5
— Joana Mortágua ????️????????️⚧️ (@JoanaMortagua) November 1, 2024
Natural de Oliveira de Azeméis, Camilo Mortágua emigrou para a Venezuela em 1951, com 17 anos. Foi a partir desse país que começou a lutar contra o fascismo em Portugal, integrou a Direção Revolucionária Ibérica de Libertação e participou no assalto ao navio Santa Maria, em 1961, sob o comando do capitão Henrique Galvão.
Nesse mesmo ano, juntamente com o revolucionário Palma Inácio e outros antifascistas, desviou um avião da TAP no percurso entre Casablanca (Marrocos) e Lisboa para largar sobre a capital portuguesa 100 mil panfletos contra o regime salazarista.
Já em 1967, esteve envolvido num assalto à filial do Banco de Portugal na Figueira da Foz para financiar a atividade antifascista — pelo qual foi condenado e acabou amnistiado depois do 25 de Abril de 1974. Nesse mesmo ano, está na fundação da Liga de Unidade e Ação Revolucionária (LUAR). Após a revolução de 25 de Abril de 1974, Camilo Mortágua dinamizou a ocupação da Herdade da Torre Bela, no Ribatejo, da qual resultou a criação da cooperativa Torre Bela.
Concentrou então a sua atenção no desenvolvimento rural e local desde a vila de Alvito, no Alentejo, onde se fixou nos anos 80 do século XX e da qual Mariana e Joana Mortágua são naturais. Em 1991 fundou a Associação Terras Dentro, nas Alcáçovas, e foi presidente da Presidente da Associação para as Universidades Rurais Europeias (APURE).
Camilo Mortágua publicou as suas memórias em dois volumes, intituladas “Andanças para a Liberdade”, nas quais percorre a sua vida desde a infância na Beira Litoral até ao 25 de Abril.
Numa das últimas entrevistas públicas, em 2019 ao jornal espanhol El País, Camilo Mortágua abriu o baú das histórias de um homem que sempre lutou contra a ditadura de Salazar e que recordou os tempos em que desviou um transatlântico, sequestrou um avião para lançar panfletos contra Salazar e assaltou um banco sem disparar um tiro.
Entre as histórias contadas na primeira pessoa destacou o assalto ao paquete português. Estava em 1961, e nascia a operação Dulcinea, que tinha um único objetivo: ocupar e desviar o paquete Santa Maria. Antes dos portugueses ocuparem o rádio do navio, contou ao jornal espanhol, ouviram-se tiros. Garantiu que “o povo espanhol” e argumentou que teria sido mal pensado se os portugueses tivessem recorrido à violência, uma vez que “a maioria nem sequer cumpriu o serviço militar”.
Enquanto decorria essa operação, o objetivo passou também a ser sequestrar um avião para sobrevoar o país e lançar panfletos contra Salazar. “Para um combatente da liberdade, não há nada pior que a passividade e o adiamento constante de novas ações”, afirmou na altura. Perante a inquietude, a 8 de novembro de 1961, Mortágua e mais seis portugueses assaltaram um avião em Casablanca com destino a Lisboa: os panfletos e as armas passaram sem problema nos poucos controlos de segurança na época.
Camilo Mortágua explicou que a polícia marroquina queria colocar os portugueses num avião da Air France com destino a Santiago de Chile. “Começaram pelo mais pequeno, eu, mas resisti de tal forma que nos deixaram em Marrocos até que o Brasil autorizou o refúgio político”, recordou. Foi naquele país que permaneceu até 1965, ano em que foi para França. E foi em Paris, no ano 1967, que, em conjunto com outros revolucionários, decidiu regressar a Portugal e levar a cabo um assalto a um banco que lhes permitisse conseguir resolver o problema da falta de dinheiro para realizar novas ações que contribuíssem para o derrube do regime. Desta forma, o grupo assaltou a sucursal do Banco de Portugal da Figueira da Foz.
Acabou por ser julgado e condenado a 20 anos de prisão por ter participado no assalto ao Banco de Portugal, na Figueira da Foz, juntamente com Hermínio de Palma Inácio, António Barracosa e Luís Benvindo, mas estava em Paris quando soube da pena e acabou por ser amnistiado depois do 25 de Abril de 1974, porque o assalto ao Banco de Portugal foi considerado um crime político.
Marcelo apresenta condolências
Numa nota no site da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa apresentou o seu “pesar às deputadas Mariana e Joana Mortágua e restante família, amigos e admiradores de Camilo Mortágua”, que descreveu como um “lutador contra a ditadura durante muitas décadas do século passado” e que morreu “ao fim de uma longa e multifacetada vida ao serviço dos ideais que abraçava”.
O CDS, numa nota enviada à imprensa, também reagiu à morte de Camilo Mortágua, dizendo que “respeita, como sempre o fará, os sentimentos da família”, “mas demarca-se, desde já, e anuncia que não participará em qualquer de homenagem, tributo ou em iniciativas laudatórias relativas a quem participou em atos violentos de que resultaram a perda de vidas humanas inocentes durante a ditadura e que , já em democracia, participou em ações criminosas como a ocupação da herdade da Torrebela”.
Já André Ventura, na rede social X, antigo Twitter, escreveu que Camilo Mortágua “era um terrorista”. “O Chega não alinhará, por isso, na sua beatificação pública ou no branqueamento dos seus atos. Isto nada tem a ver com a dor dos familiares – que respeito – mas com a memória que não podemos perder. Em nome da verdade!”, acrescentou.
Joana Mortágua, filha de Camilo Mortágua, respondeu a André Ventura na mesma rede social: “Admiro o meu pai por toda a sua história. Saído da pobreza, quis a liberdade sempre ao lado dos pobres. Uma coragem infinita. Admiro-o ainda mais por mesmo depois de morto ter o poder de assustar fascistas. Que medalha para um antifascista já tão condecorado.”