O antifascista Camilo Mortágua, pai das deputadas do Bloco de Esquerda Mariana e Joana Mortágua, morreu aos 90 anos, segundo uma nota enviada à Lusa pela família.

“A família informa que Camilo Mortágua morreu esta madrugada, dia 1 de novembro, aos 90 anos. Partilhamos com os muitos amigos e companheiros que se cruzaram com Camilo Mortágua a alegria de termos testemunhado uma vida de convicções, de compromisso com a liberdade e com a solidariedade”, pode ler-se na nota.

De acordo com as informações avançadas, o velório decorre, esta sexta-feira, a partir das 17h30 na casa mortuária de Alvito (Rua da Misericórdia). O funeral está marcado para sábado, às 11h00, partindo da casa mortuária para o cemitério de Alvito (distrito de Beja).

Nas redes sociais, as filhas Mariana e Joana Mortágua, ambas deputadas do Bloco de Esquerda, deram partilharam a notícia com uma fotografia do pai. Joana Mortágua deixou a seguinte frase: “Há nomes tão fortes que a morte só leva emprestado.”

Natural de Oliveira de Azeméis, Camilo Mortágua emigrou para a Venezuela em 1951, com 17 anos. Foi a partir desse país que começou a lutar contra o fascismo em Portugal, integrou a Direção Revolucionária Ibérica de Libertação e participou no assalto ao navio Santa Maria, em 1961, sob o comando do capitão Henrique Galvão.

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Nesse mesmo ano, juntamente com o revolucionário Palma Inácio e outros antifascistas, desviou um avião da TAP no percurso entre Casablanca (Marrocos) e Lisboa para largar sobre a capital portuguesa 100 mil panfletos contra o regime salazarista.

Já em 1967, esteve envolvido num assalto à filial do Banco de Portugal na Figueira da Foz para financiar a atividade antifascista — pelo qual foi condenado e acabou amnistiado depois do 25 de Abril de 1974. Nesse mesmo ano, está na fundação da Liga de Unidade e Ação Revolucionária (LUAR). Após a revolução de 25 de Abril de 1974, Camilo Mortágua dinamizou a ocupação da Herdade da Torre Bela, no Ribatejo, da qual resultou a criação da cooperativa Torre Bela.

Concentrou então a sua atenção no desenvolvimento rural e local desde a vila de Alvito, no Alentejo, onde se fixou nos anos 80 do século XX e da qual Mariana e Joana Mortágua são naturais. Em 1991 fundou a Associação Terras Dentro, nas Alcáçovas, e foi presidente da Presidente da Associação para as Universidades Rurais Europeias (APURE).

Camilo Mortágua publicou as suas memórias em dois volumes, intituladas “Andanças para a Liberdade”, nas quais percorre a sua vida desde a infância na Beira Litoral até ao 25 de Abril.

Camilo Mortágua entrevistado pelo El País: “Se não estou de acordo, não me calo. Dediquei-me 30 anos a isso”

Numa das últimas entrevistas públicas, em 2019 ao jornal espanhol El País, Camilo Mortágua abriu o baú das histórias de um homem que sempre lutou contra a ditadura de Salazar e que recordou os tempos em que desviou um transatlântico, sequestrou um avião para lançar panfletos contra Salazar e assaltou um banco sem disparar um tiro.

Entre as histórias contadas na primeira pessoa destacou o assalto ao paquete português. Estava em 1961, e nascia a operação Dulcinea, que tinha um único objetivo: ocupar e desviar o paquete Santa Maria. Antes dos portugueses ocuparem o rádio do navio, contou ao jornal espanhol, ouviram-se tiros. Garantiu que “o povo espanhol” e argumentou que teria sido mal pensado se os portugueses tivessem recorrido à violência, uma vez que “a maioria nem sequer cumpriu o serviço militar”.

Enquanto decorria essa operação, o objetivo passou também a ser sequestrar um avião para sobrevoar o país e lançar panfletos contra Salazar. “Para um combatente da liberdade, não há nada pior que a passividade e o adiamento constante de novas ações”, afirmou na altura. Perante a inquietude, a 8 de novembro de 1961, Mortágua e mais seis portugueses assaltaram um avião em Casablanca com destino a Lisboa: os panfletos e as armas passaram sem problema nos poucos controlos de segurança na época.

Camilo Mortágua explicou que a polícia marroquina queria colocar os portugueses num avião da Air France com destino a Santiago de Chile. “Começaram pelo mais pequeno, eu, mas resisti de tal forma que nos deixaram em Marrocos até que o Brasil autorizou o refúgio político”, recordou. Foi naquele país que permaneceu até 1965, ano em que foi para França. E foi em Paris, no ano 1967, que, em conjunto com outros revolucionários, decidiu regressar a Portugal e levar a cabo um assalto a um banco que lhes permitisse conseguir resolver o problema da falta de dinheiro para realizar novas ações que contribuíssem para o derrube do regime. Desta forma, o grupo assaltou a sucursal do Banco de Portugal da Figueira da Foz.

Acabou por ser julgado e condenado a 20 anos de prisão por ter participado no assalto ao Banco de Portugal, na Figueira da Foz, juntamente com Hermínio de Palma Inácio, António Barracosa e Luís Benvindo, mas estava em Paris quando soube da pena e acabou por ser amnistiado depois do 25 de Abril de 1974, porque o assalto ao Banco de Portugal foi considerado um crime político.

Marcelo apresenta condolências

Numa nota no site da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa apresentou o seu “pesar às deputadas Mariana e Joana Mortágua e restante família, amigos e admiradores de Camilo Mortágua”, que descreveu como um “lutador contra a ditadura durante muitas décadas do século passado” e que morreu “ao fim de uma longa e multifacetada vida ao serviço dos ideais que abraçava”.