A presidente do regulador dos media defendeu, em entrevista à Lusa, que “é muito importante que a ERC saiba o que se pretende da instituição”, pelo que é necessário rever os estatutos para incluir novas competências.
Helena Sousa cumpre esta quinta-feira o primeiro ano de mandato à frente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), num momento em que o setor enfrenta vários desafios.
Questionada sobre a revisão dos estatutos do órgão, a professora catedrática considera que “é muito importante que a ERC saiba exatamente o que se pretende da instituição”.
Isto porque “nós não podemos ter, por exemplo, os senhores deputados e as senhoras deputadas a dizer que qualquer pessoa pode ser detentor dos órgãos de comunicação social (…) e que deveria haver escrutínio, uma avaliação da idoneidade. Ora, muito bem, mas se é isso que desejam, a ERC tem que ter essa competência”, explicou Helena Sousa.
“E por aí adiante, portanto, aquilo que não é muito coerente é pedir à ERC coisas que a ERC não pode fazer, porque essas exigências não fazem sentido, fazem com que as pessoas pensem que a ERC não está a fazer aquilo que é devido quando” o regulador “tem que seguir o princípio da legalidade”, defendeu.
Até porque “a ERC só pode fazer aquilo que a lei permite. E aí a ERC tem procurado ir até ao limite”, apontou Helena Sousa.
Agora “temos novas competências que decorrem do EMFA [European Media Freedom Act], portanto do Regulamento para a Liberdade dos Meios de Comunicação, temos as competências que decorrem também do DSA [Digital Services Act], do Regulamento para os Serviços Digitais e também faz sentido que essas competências apareçam nos estatutos”, justificou.
Nesse sentido, “entendemos que seria útil fazer uma revisão dos estatutos”, reitera Helena Sousa, admitindo, no entanto, que será “talvez o mais urgente” avançar com o Código da Comunicação Social, que consta entre as 30 medidas do Plano de Ação do Governo para o setor, ou com a revisão das leis setoriais.
“Porque não faz sentido continuarmos a trabalhar com a Lei de Imprensa nos termos em que ela existe. É uma lei profundamente desatualizada, não responde ao digital, aos desafios do digital e não é lógico que isso aconteça”, lamentou.
De acordo com Governo, o Código da Comunicação Social deverá estar concluído no final do primeiro semestre de 2025.
O plano de atividades da ERC para o mandato 2023-2028 tem 10 eixos estratégicos, entre os quais o modelo regulatório, que tem como objetivo garantir um modelo adequado às competências da entidade reguladora e que preserve a sua independência financeira.
“A ERC não tem propriamente um modelo coerente de financiamento”, diz a presidente, quando questionada sobre o tema. Atualmente uma parte do financiamento vem da Assembleia da República, outra parte da Autoridade Nacional das Comunicações (Anacom) e outra parte das taxas.
“Não há, digamos, um modelo muito consistente porque o dinheiro da Anacom é transferido para as Finanças e nesse quadro depois nem sempre o processo de transferência desse dinheiro ocorre no tempo adequado, portanto “diria que há um problema de adequação, certamente do dinheiro necessário às funções que a ERC desempenha, mas há também uma questão de previsibilidade”, referiu.
O regulador dos media “precisa de saber quando vai receber esse dinheiro e isso é muito importante, e tem havido dificuldades ao longo do tempo nessa matéria”, mas, “neste momento, temos garantia de que algum dinheiro que estava pendente será transferido”, argumentou.
Esse montante “ainda não entrou, mas julgamos que acontecerá em breve”, acrescentou.
Questionada sobre se isso tem trazido constrangimentos para o funcionamento da ERC, Helena Sousa explica que a entidade tem procurado “reorganizar um pouco a estrutura”.
Ou seja, “conseguimos fazer já alguns contratos, conseguimos recrutar algumas pessoas, mas naturalmente que temos agora novas exigências, nomeadamente por questões que se prendem com a aplicação do Digital Services Act”, o qual “tem implicações específicas e que também terá um financiamento para a sua aplicação”.
Sobre os desafios da ERC, a presidente diz que tem “muitas frentes”, destacando três grandes.
O primeiro continua a ser “a digitalização”, porque “é tudo muito novo, os públicos e as audiências não estão onde por vezes pensamos que estão, portanto nós temos que colocar os conteúdos onde está a atenção e há de facto muita legislação nessa área com a qual nós temos que nos confrontar, porque é preciso harmonizar a legislação — e ela nem sempre é clara, há algumas contradições, alguma insegurança jurídica”, aponta.
Depois, “precisamos também de trabalhar em termos de dilatar as nossas relações com os outros reguladores, tanto internamente como externamente”, que passa por aprofundar também as relações com as entidades que produzem conteúdos, com os órgãos de comunicação social.
“Precisamos de desenvolver essa relação de proximidade e também naturalmente com os centros de produção de conhecimento” e, por último, “como um desafio mais estrutural, estarmos junto das pessoas, dos cidadãos, porque a ERC trabalha para os cidadãos”, afirmou.
A ERC “deve garantir, deve promover a qualificação do ambiente simbólico em que vivemos e é muito, muito importante termos um ambiente simbólico de qualidade”, que “seja diverso, que seja plural, onde o contraditório faça parte e seja vivido com toda a tranquilidade e com toda a normalidade e, acima de tudo, que os cidadãos tenham a informação de que precisam para fazerem escolhas”, sublinhou Helena Sousa.
Inteligência Artificial “tem que ser instrumental ao jornalismo”
Para Helena Sousa a inteligência artificial (IA) “tem que ser instrumental ao jornalismo” apesar de ser um “grande desafio” no que respeita à desmontagem dos conteúdos.
Helena Sousa adianta que o órgão “ainda não” usa a IA, mas “está a acompanhar” e a consultar os media sobre a sua utilização. A inteligência artificial “é um assunto sobre o qual todos falam neste momento. Não é novo, mas de algum modo democratizou-se com o ChatGPT e todas as outras ferramentas que, de algum modo, ajudam os cidadãos a mexer-se, a movimentar-se neste novo mundo”.
Agora, como todas as tecnologias, a IA “cria medos, mas também cria possibilidades, e certamente algumas redações já estão a utilizar, outras certamente que não”, prossegue Helena Sousa.
Na ERC “estamos a acompanhar esse processo. Temos uma equipa que está precisamente a consultar órgãos de comunicação social, está em diálogo com um conjunto de órgãos de comunicação social para saber se já estão a fazer alguma utilização para tentar perceber de que modo é que leem os desafios e os riscos da inteligência artificial”, conta a presidente.
Em relação ao caso português, “nós ainda não temos um estudo muito aprofundado, mas estamos a fazê-lo, e sabemos naturalmente que algumas redações até já têm instrumentos normativos, portanto, não estamos de um modo absolutamente cego, mas não temos um estudo ainda adequado que possa ser publicado e que possa ser útil”, diz.
A Europa aprovou regulação sobre o assunto e a “ERC, tanto quanto percebemos, será uma das entidades competentes para a implementação (…) desse regulamento. É claro que quando essas competências nos forem devidamente atribuídas, uma vez mais, tudo faremos para o fazer com todo o cuidado, com todo o rigor, com toda a exigência”, salienta Helena Sousa.
“Agora, aquilo que me parece absolutamente fundamental relativamente à IA é que ela não serve para substituir o jornalismo”, sublinha, referindo que a IA pode “eventualmente ser uma ferramenta útil para ajudar o jornalismo e os jornalistas”.
Mas, insiste, “o essencial do jornalismo passa pelo humano, passa pela decisão, pela escolha do que é notícia, do que merece cobertura noticiosa, passa pela escolha editorial relativamente aos elementos que compõem a notícia ou a reportagem, passa pelo agendamento”.
Ou seja, “tudo aquilo que é central no jornalismo, a verificação dos factos, o rigor, tudo isso se mantém”, reforça.
Em suma, “a inteligência artificial tem que ser instrumental ao jornalismo e, se for utilizada, tem que ser para ajudar, para melhorar o funcionamento do jornalismo”, defende Helena Sousa, que é a primeira mulher a presidir a ERC.
Além disso, a IA é “um grande desafio também do ponto de vista da desmontagem dos conteúdos”.
Neste aspeto, “é um desafio para o jornalismo, mas é também um desafio para a cidadania, porque, de facto, é muito importante ajudar os cidadãos a desmontar aquilo que é possível fazer com a inteligência artificial”, considera.
“E essas garantias de que as pessoas compreendem o que é verdadeiramente aquilo que estão a ver, isso sim, parece-me muito desafiante”, admite.
Nessa esfera “precisamos da literacia mediática e a inteligência artificial será certamente um dos eixos estruturantes no quadro das literacias (…) de hoje e do futuro”, remata.