Foi uma manhã tensa e agitada no tribunal de Avignon, no sul de França, durante o depoimento final de Gisèle Pelicot, a mulher que foi drogada e violada durante dez anos pelo seu marido e dezenas de homens que se deslocavam à casa do ex-casal para consumar as agressões sexuais que decorriam enquanto estava inconsciente.

Os três filhos saíram abruptamente da sala quando foram exibidas imagens de Caroline Darian, filha dos Pelicot, nua. Os advogados das duas partes discutiram perante a linha de defesa dos advogados de Dominique Pelicot: tentaram descredibilizar Gisèle Pelicot, acusando-a de não conseguir demonstrar contra o marido a mesma indignação e raiva que revelou perante os atos dos restantes agressores sexuais.

“Eu sabia no que me estava a meter quando abdiquei do direito ao julgamento fechado. Admito que hoje posso sentir o cansaço”, começou por afirmar a principal vítima de Dominique Pelicot, citada pela BBC, que acompanhou o julgamento na sala de audiências. “A sociedade neste momento precisa de olhar para a forma como banalizamos a violação”, apelou.

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Gisèle admitiu ainda em tribunal ter “perdido 10 anos da [sua] vida” devido a preocupações médicas com as perdas de memória inexplicáveis e problemas ginecológicos que lhe eram provocados pelas constantes substâncias que lhe eram administradas pelo marido e pelas agressões sexuais que o mesmo promovia. “Tenho agora 72 anos e não sei quanto tempo me resta”, lamentou, referindo que os anos em que pensou estar doente foram “como uma sentença de morte”. “Pensei que morreria ou acabaria num hospital psiquiátrico”, acrescentou.

Advogada de Dominique Pelicot acusou vítima de ter usado “palavras duras” contra os outros arguidos, mas não contra o ex-marido

Após as declarações iniciais, Gisèle Pelicot foi questionada diretamente pela equipa de defesa de Dominique Pelicot, o seu ex-marido. Acusaram-na de não ter usado contra o ex-marido as mesmas “palavras duras” que usou contra os restantes agressores ao longo das últimas semanas de julgamento. O advogado levantou ainda a voz e sugeriu que Gisèle ainda tem medo do ex-marido e está sob o seu controlo porque não consegue “forçar-se” a condená-lo totalmente.

Foi ainda questionada sobre ter levado roupas quentes para Dominique Pelicot quando ele já se encontrava na prisão. “Não tenho qualquer problema em responder a isso”, disse, acrescentando que ela e o filho levaram roupa ao agressor já depois de ter sido detido, sem mais justificações.

A resposta emocional de Gisèle Pelicot ao julgamento foi repetidamente questionada, com outro advogado da defesa de Dominique a confrontar a mulher com o facto de só ter chorado no dia em que o passado de abusos na infância do seu ex-marido foi revelado em tribunal, com especialistas a determinar que sofreu uma “cisão de personalidade“. Gisèle respondeu: “Eu sei o que ele viveu… Eu era muito próxima da minha sogra e sei tudo.”

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A defesa do agressor tentou ainda conectar Gisèle às hospitalizações de Dominique Pelicot durante as audiências, acusando-a de não marcar presença em tribunal nessas ocasiões, sugerindo que o teria acompanhado. A linha de argumentação originou gritos das duas equipas de defesa, com os advogados da mulher abusada a garantirem que a acusação era falsa. “Estive aqui todas as vezes, mesmo quando ele estava hospitalizado. As únicas sessões que perdi foram quando tinha consultas com o meu psiquiatra”, garantiu Gisèle Pelicot na resposta.

Os advogados de defesa perguntaram ainda a Pelicot se, olhando para trás, consegue “ver os sinais” de que algo não estava bem, por exemplo, em relação a como se sentia nas manhãs seguintes a ser drogada e abusada. A mulher refutou a ideia de que devia ter percebido antes, apontando para o complexo plano de dissimulação operado pelo seu ex-marido: “Acordava com o meu pijama habitual, tomávamos o pequeno-almoço e íamos fazer caminhadas.”

Rejeitou ainda, como já tinha feito antes em tribunal, que fosse possível os co-arguidos terem sido manipulados a cometer as violações por considerarem que ela era cúmplice dos atos sexuais. Apontou para o facto de, nos vídeos gravados pelo ex-marido, ser audível o seu ressonar. “Acho que se percebe logo que algo não está bem”, referiu.

“Eu não o perdoo. As ações dele são imperdoáveis”

O advogado de defesa de Dominique Pelicot, Guillaume De Palma, questionou a principal vítima sobre se considera que o seu marido era um “predador sexual”. Gisèle Pelicot não demonstrou ter dúvidas em relação à alegação: “Claro, certamente.”

“Mas, já agora, quero salientar que não o perdoo. As suas ações foram imperdoáveis. Fui traída e enganada”, acrescentou na resposta em tribunal, afirmando que “não poderia ter imaginado nem por um segundo que ele fosse capaz de submissão química… os meus amigos, a minha família não viram nada”.

Segundo a BBC, De Palma causou polémica no início do julgamento quando disse que “a violação nem sempre é violação”, tendo argumentado que “sem intenção de cometer violação, não há violação”.

Gisèle Pelicot foi ainda questionada sobre um alegado caso extraconjugal que teve nos anos 90. A defesa de Dominique Pelicot tentou associar o acontecimento às agressões sexuais cometidas pelo homem durante mais de 10 anos. “Por vezes pensei que ele estava em busca de vingança pelo caso que tive” admitiu Gisèle, ressalvando que entretanto já passaram 30 anos e que por isso não tem uma resposta certa.

Pouco depois, os três filhos dos Pelicot saíram abruptamente do tribunal enquanto Gisèle Pelicot era questionada sobre imagens com nudez da sua filha Caroline que foram encontradas no portátil de Dominque. “Não sei o que dizer sobre isto, ele terá de responder”, disse Gisèle.